sábado, agosto 21, 2004

"O Regresso" do cinema Russo


A vida de Andrei (Vladimir Garine) e Ivan (Ivan Dobronravov), dois irmãos em fase de início de adolescência, é completamente abalada quando o seu pai (Konstantin Lavronenko) aparece em casa após uma ausência inexplicada de 12 anos. Tudo o que sabem acerca dele é que é (ou foi) piloto, e a única memória que retêm deste estranho homem é uma fotografia tirada há mais de dez anos. A aparente frieza que o pai mantém para com os seus filhos não parece oferecer grandes esclarecimentos. No entanto, este regresso não será um mero retorno a casa: Andrei e Ivan partem com o seu pai numa viagem com o suposto objectivo de recuperarem o tempo perdido. No entanto, as "férias" que terão com o pai serão muito diferentes do que alguma vez poderiam imaginar...


"O Regresso" chegou a Portugal transportado numa verdadeira avalanche de elogios onde não faltavam citações a praticamente todos os grandes cineastas russos do passado (sobretudo Tarkovski e Kulechov), e carregando consigo o prestígio do Leão de Ouro do Festival de Veneza do ano passado. Ainda assim, as poucas imagens que se vêem por aí poderiam sugerir que se tratava de um filme essencialmente contemplativo, de grande beleza visual mas de um possível vazio narrativo. Felizmente, está muito longe de ser o caso. "O Regresso" é uma das estreias mais estimulantes deste Verão e, para variar, dá mesmo para acreditar na hype de que se trata de um dos melhores filmes Russos das últimas décadas!

Se é verdade que a qualidade do notável trabalho do director de fotografia Mikhail Krichman salta à vista desde os primeiros planos do filme, não é (apesar de tudo) nela que encontraremos os maiores prazeres. A primeira sequência, onde um grupo de rapazes testa a sua "virilidade" numa competição privada de mergulho e onde o pequeno Ivan é gozado por não querer saltar para a água gelada, imediatamente estabelece o tom e lança a temática que o súbito retorno do pai só vem confirmar e aprofundar: trata-se de um filme sobre o crescimento no masculino e, também, sobre um conflito entre duas gerações de homens muito diferentes. Não é por acaso que as únicas mulheres neste filme, a mãe (figura essencialmente protectora, como podemos ver no início) e a avó (completamente apagada em segundo plano) estejam ausentes no resto da história, e nem a empregada do restaurante tem qualquer função que não a de dar a oportunidade ao Pai de ensinar algumas boas maneiras a Andrei.


O argumento, tal como a figura do Pai, assenta em poucos diálogos (a maioria e os mais extensos pertencem aos dois irmãos), optando por expressar as suas ideias através das pequenas insinuações do pouco que é dito, do que não é dito e dos momentos de silêncio. Recusa-se a fazer qualquer separação maniqueísta das personagens, evitando a tentação de tornar o pai no "vilão" da história, conseguindo assim fugir a quaisquer estereótipos e conferir uma enorme profundidade e um certo mistério às três personagens masculinas. Isto porque em vez de nos brindar com as respostas a todas as perguntas, prefere dar-nos pistas e deixar outras questões no ar. É uma aposta díficil, mas definitivamente ganha.

Há espaço para alguma crítica social (nomeadamente no modo como é sugerida a pobreza de diversas partes da sociedade russa), mas é na composição de personagens que se marcam alguns dos maiores pontos. O Pai é um homem no sentido mais "tradicional" do termo: másculo, reservado, autoritário, seguríssimo de si, absolutamente víril e com uma enorme dificuldade em expressar qualquer tipo de carinho. A viagem para a qual parte com os seus filhos será uma espécie de ritual de iniciação onde procurará, com métodos muito pouco usuais, transmitir os seus valores e fazer deles uns "Homens". No entanto, se Andrei ainda se identifica minimamente com o seu pai, esta sua atitude vai suscitar um confronto com Ivan que destabilizará tudo e que constituirá o principal ponto de interesse da história. Para isso muito contribuem as excelentes interpretações de todo o elenco, estando os três actores principais completamente à altura uns dos outros. É, portanto, de lamentar ainda mais a morte precoce de Vladimir Garine (morreu afogado no lago onde decorreu uma parte das filmagens, pouco depois destas terminarem), que certamente ainda teria muito a dar à 7ª arte. Resta-nos a esperança de Ivan Dobronravov e a já confirmada capacidade de Konstantin Lavronenko. O que não é pouco.


Há que sublinhar, muito especialmente, a estreia na realização de Andreï Zviaguintsev, um antigo actor que consegue revelar uma maturidade absolutamente impressionante para uma primeira obra. Num filme em que podia muito facilmente cair na tentação de se limitar a justapor uma quantidade de imagens bonitas na vaga esperança de fazer "poesia", o realizador consegue contar uma história sobre o crescimento com uma enorme segurança e, ao mesmo tempo, realmente ser poético. É, aliás, na découpage e na montagem que Zviaguintsev revela uma enorme noção de ritmo, um conhecimento muito preciso de quais planos se devem prolongar e quais se devem cortar mais cedo. O resultado é uma dilatação do tempo extraordinariamente conseguida, capaz de nos fazer passar as emoções das personagens sem alguma vez despertar o tédio e a monotonia.


"O Regresso" é um filme onde o frio parece transpor o grande ecrã e invadir-nos e, no entanto, consegue também ser de um enorme calor humano, chegando a proporcionar-nos vários momentos de um humor discreto que nos fazem sentir que estamos perante seres humanos e não meras personagens de uma ficção encenada. E não esqueçamos a música de Andrei Dergatchev, subtil e poderosa ao mesmo tempo. A enigmática sequência final é o derradeiro murro no estômago, deixando-nos a tarefa de interpretar as (belíssimas) imagens que desfilam diante dos nossos olhos muito depois dos créditos acabarem de rolar. Exercício a que nos dedicamos com prazer, tal é o fascínio que o filme deixa em quem o vê.

O Regresso (Vozvrashcheniye)
Drama, Rússia, 2003.

Realização: Andreï Zviaguintsev
Argumento: Vladimir Moiseyenko & Aleksandr Novototsky
Elenco: Ivan Dobronravov, Konstantin Lavronenko, Vladimir Garine, Natalia Vdovina, Galina Petrova
Produção: Dmitri Lesnevsky
Produção executiva: Yelena Kovalyova
Dir. de fotografia: Mikhail Krichman
Música: Andrei Dergatchev
Montagem: Vladimir Mogilevsky
Som: Andrei Khudyakov
Tradução: Sara David Lopes (a partir da versão inglesa)
Site oficial português: http://www.atalantafilmes.pt/2004/oregresso/

sábado, agosto 14, 2004

Dossier: A Questão Michael Moore - Operação Toucinho Canadiano (Parte IV de VI)


Depois da sua incursão no documentário cinematográfico com “Roger & Eu” e no mundo da TV com a primeira temporada de “TV Nation”, Michael Moore decidiu largar (temporariamente) a sua veia documentarista e experimentar a ficção com uma sátira política completamente nonsense – chamou-se por cá Operação Toucinho Canadiano. E não resultou tão bem quanto isso nem na bilheteira nem na página da crítica de cinema.


O plot é simples: o presidente dos Estados Unidos da América (Alan Alda) depara-se com uma situação de impopularidade tremenda. As eleições não estão muito distantes e se algo não for feito rapidamente, o partido arrisca-se a uma estrondosa derrota. O que fazer então para distrair a atenção do público Americano e garantir uma subida de popularidade? Declarar uma guerra fria ao Canadá (isto porque os Russos estão numa de investir nas infra-estruturas e na educação e não têm nem tempo nem dinheiro para mais uma guerra fria...)! O problema é que o que começa como sendo simplesmente uma “guerra de papel” acaba por descambar numa guerra a sério quando o xerife Bud Boomer (o falecido John Candy) e a sua amada Honey decidem fazer justiça pelas suas próprias mãos e realizarem a sua própria invasão ao Canadá!

Se em “Bowling for Columbine” Michael Moore viria a abordar os temas da cultura do medo, da influência das indústrias de armamento e o contraste entre as realidades sociais norte-americanas e canadianas, bem que se pode dizer que já neste filme se assistia a um “ensaio” de tais temáticas. O realizador brinca com os estereotipos que existem sobre americanos e canadianos, usando-os para efeito cómico - o povo norte-americano (mas, sobretudo, o poder político e militar norte-americano) é retratado como sendo completamente ignorante da realidade do seu país vizinho, enquanto que o Canadá é apresentado como um país de pessoas de uma boa vontade inacreditável, incapazes de ficarem violentos mesmo perante os maiores insultos... a não ser que estes sejam dirigidos à sua cerveja ou equipa de hóquei nacional!


O que falha no filme é o seu (assumido) exagero burlesco. Embora Moore queira criar uma farsa política na onda de “Dr. Estranhoamor” de Stanley Kubrick, muitas das suas qualidades acabam por se perder nalguns gags mais óbvios e básicos. A ideia da “criação de uma guerra a todo o custo” para reconquistar as eleições é original, mas seria melhor explorada em filmes como “Manobras na Casa Branca” de Barry Levinson; enquanto que a invasão do Canadá seria retomada em moldes ainda mais ácidos no delicioso "South Park - O Filme" de Trey Parker e Matt Stone (que, por acaso, até são amigos de Moore). No entanto, há que realçar alguns diálogos particularmente inteligentes que por vezes vão surgindo, como é o caso daquele semi-profético em que o presidente dos EUA despreza completamente a possibilidade de existirem ameaças terroristas!

Não é um filme excepcional, e é a confirmação de que Moore é muito mais um documentarista do que um ficcionista. Mas não deixa de ser um filme curioso, com alguns pontos fortes que tornam o seu visionamento bastante agradável.


Já agora, mantenham os olhos bem abertos e estejam atentos durante todo o filme: entre outros, há para descobrir cameos de James Belushi (como um reporter de TV para a “NBS”), Dan Aykroyd (num pequeno mas hilariante papel como polícia canadiano) e do próprio Michael Moore como um manifestante que idolatra Bud Boomer!

Operação Toucinho Canadiano (Canadian Bacon)
Comédia, 1995, EUA.

Argumento e realização: Michael Moore
Elenco: John Candy, Alan Alda, Rhea Pearlman, Kevin Pollack, Rip Torn, Kevin J. Connor,
Produção: David Brown, Ron Rotholz, Michael Moore
Dir. de fotografia: Haskell Wexler
Música: Elmer Bernstein & Peter Bernstein
Montagem: Wendy Stanzler, Michael Berenbaum

Disponibilidade:

O filme já passou no Canal Hollywood algumas vezes, e o IMDB atribui-lhe um certificado de “para maiores de 12 anos” para o território Português, mas desconheço qualquer edição nacional em DVD do mesmo.


Quem procurar edições estrangeiras também não terá muito por onde escolher: as edições americanas, inglesas e francesas são praticamente iguais (só a inglesa é que dispensa umas legendas em espanhol e francês) e, de conteúdos adicionais, só têm mesmo a trailer...

quinta-feira, agosto 12, 2004

Dossier: A Questão Michael Moore - Roger & Eu (parte III de VI)


Em 1987, Roger Smith, chairman da General Motors, decidiu, em pleno apogeu económico da empresa construtora de automóveis, fechar a fábrica localizada em Flint, no Michigan. Desse encerramento resultou o despedimento de mais de 40.000 empregados e o início do caos social na pequena cidade. Michael Moore, habitante de Flint que na altura se encontrava desempregado, decidiu não ficar passivo perante esta situação e, após juntar algum dinheiro ao organizar jogos comunitários de bingo na sua casa (!), pegou numa pequena equipa de filmagens que conhecera dos seus tempos de jornalista e partiu numa missão muito peculiar: fazer um documentário onde se mostrasse as consequências desastrosas do encerramento injustificado da fábrica e, ao mesmo tempo, contactar directamente com Roger Smith e convidá-lo a visitar Flint para lhe mostrar o impacto da sua decisão na vida dos habitantes da sua terra natal. Nunca conseguiu falar com Roger. Mas fez um dos documentários mais marcantes dos anos 80.

Quando estreou em 1989, “Roger & Eu” causou um burburinho considerável nos EUA. Pela primeira vez em muito tempo, a “América dos pequeninos” via no grande ecrã um dos seus a fazer frente ao patrão de uma grande corporação, munido unicamente de uma câmara e um sentido de humor ácido, e a conseguir dar uma luta impressionante! Embora o próprio poster não deixe quaisquer dúvidas de que Moore nunca irá encontrar-se com Roger, o que cativa o espectador não é (só) as tentativas frustradas de Moore de chegar ao último andar da sede da GM para falar com o poderoso chefão – é que entre esses momentos, Moore faz um fresco da situação na sua cidade natal que é das mais sinceras e perturbadoras viagens à América do interior jamais registadas em película.

Somos confrontados com o contraste da despreocupação dos ricos (que organizam festas onde alguns desempregados fazem de estátuas humanas, não fazendo sequer ideia de que Flint está a passar por uma crise social) e o brutal despejo de várias famílias das suas casas (uma das quais em pleno dia de Natal...) pela parte de um Xerife-adjunto que diz honestamente que só está a fazer o seu trabalho. Há também a senhora que combate a pobreza vendendo coelhinhos como “animais de estimação ou como comida”, não tendo qualquer dificuldade em abater e esfolar os ditos animais em frente à câmara naquela que foi (ridiculamente) a cena mais contestada de todo o filme. Pelo caminho, também fazemos uma viagem ao passado de Flint, que em tempos foi uma dos maiores representantes do “Sonho Americano” e, na altura em que o documentário foi rodado, foi eleita pela “Fortune Magazine” como a mais pobre cidade dos EUA.

O que mais toca é a evidente identificação que Moore tem com as pessoas da sua cidade natal. “Roger & Eu” pode ter inúmeros momentos que nos fazem rir, mas é sempre um riso amargo. Trata-se de um documentário pessoalíssimo (não é por acaso que o filme, até no título, está narrado na primeira pessoa do singular) sobre uma situação extremamente dolorosa para o seu autor, e o humor apresentado é sobretudo irónico e reflexivo. Não sabemos por vezes se havemos de rir com o ridículo que é assistir à inauguração em Flint de uma prisão onde as pessoas são convidadas “a passar uma noite dentro” para comemorar a ocasião ou a ficar imensamente furiosos com o facto das coisas terem chegado a um ponto onde situações como esta não pertencem ao campo do surreal!


No fim do dia, Moore pode não ter conseguido fazer com que Roger Smith assistisse pessoalmente ao estado das coisas em Flint, nem ter feito com que os desempregados da sua cidade recuperassem os seus empregos. Mas conseguiu dar-lhes voz e fazer com que os espectadores do resto do mundo conhecessem e reflectissem sobre a sua situação. E essa é a maior vitória do filme.

Roger e Eu (Roger and Me)
Documentário, 1989, EUA.

Argumento, produção e realização: Michael Moore
Co-Produtora: Kathleen Glynn
Operador de Câmara: Christopher Beaver, John Prusak, Kevin Rafferty e Bruce Schermer.
Montagem: Wendey Stanzler & Jennifer Beman
Cor, 87 minutos.

Disponibilidade:

Tragicamente, a primeira obra de Moore permanece inédita em solo português, isto tanto em DVD como em VHS, embora já tenha, inclusive, recebido honras de passar na televisão há vários anos (na SIC, se a memória não me falha...), muito antes de Michael Moore ser MICHAEL MOORE.



No entanto, não é difícil encontrar nas FNACs nacionais o DVD francês da Warner Brothers (“Roger et Moi”) que, como mais valia para quem não for grande conhecedor da língua de Molière, vem abastecido de legendas em Inglês, Alemão, Sueco, Norueguês, Dinamarquês, Finlandês e... obviamente, Francês! Nada de legendas em português, mas sempre é melhor que nada! Ah, e também há no disco umas dobragens em Francês e Alemão, mas todos sabemos que a versão original é aquela que vamos querer ouvir!

É uma edição praticamente desprovida de extras, mas felizmente temos, para nos consolar, a trailer original para as salas de cinema e (mais relevantemente) um comentário de áudio do próprio Michael Moore que deverá ser do interesse de todos que queiram saber mais sobre a concepção do filme.

Existem também as versões norte-americanas e inglesas deste disco, sendo a primeira igual à francesa em termos de conteúdos (mas com menos legendas por onde escolher) e a segunda bastante inferior, já que contém o filme e... nada mais!

É só uma pena que em nenhuma destas edições se tenha incluído também a curta-metragem documental “Pets or Meat: The Return to Flint”, um especial de 24 minutos feito para a TV, documentando o que acontecera aos habitantes de Flint três anos depois da conclusão de “Roger e Eu”.

A Emissão prossegue dentro de momentos...

A gerência pede desculpas pela demora da actualização do dossier "Michael Moore", mas problemas técnicos envolvendo discos rígidos, jumpers, fontes de alimentação e outros etc. do mundo informático não permitiram a inclusão diária de posts que se desejava. Se tudo correr bem, a partir de hoje os posts devem retomar o ritmo inicialmente previsto.

O post referente à primeira longa-metragem de Michael Moore, "Roger & Eu", será publicado dentro de breves instantes...

segunda-feira, agosto 09, 2004

Dossier: A Questão Michael Moore - Fahrenheit 9/11 (parte II de VI)

"Fahrenheit 9/11 - A Temperatura a que Arde a Liberdade"


“Fahrenheit 9/11” começa com o mesmo ponto de partida do livro “Stupid White Men”: regressamos a 2000, no dia das eleições para a Presidência dos EUA. Al Gore é anunciado como sendo presidente mas, pouco tempo depois, é a FOX quem revela que a contagem dos votos, na realidade, dá a vantagem a Bush. Os restantes média apressam-se a dar-lhe razão. Gore já não é presidente, e Bush entra na Casa Branca à chuva de ovos e tomates de inúmeros manifestantes que contestam a sua eleição. Terá sido tudo um sonho? Um pesadelo? Ou simplesmente a realidade?

O mais recente filme de Michael Moore assume-se desde logo como sendo “Anti-Bush”. Quem vai vê-lo não deve esperar encontrar aqui uma visão jornalistica do tema, mas sim uma tese sobre o fracasso berrante de uma administração que teve como lema o “conservadorismo compreensivo”. É talvez o filme mais criticado de Moore, mesmo entre os seus habituais admiradores. É também aquele em que o realizador aparece menos no ecrã, sendo que a maior parte daquilo que vemos são imagens de arquivo montadas sobre uma ordem específica e “narradas” pela voz de Moore.


Manipulação? Mas o que é o cinema senão a arte da manipulação dos sons e das imagens? Basta colocar um plano ao lado de outro para existir manipulação, por muito pequena que seja. Quanto à alegada manipulação de factos, é o próprio Moore que desafia quem encontrar incoerências para as denunciar publicamente de modo a ganhar uma recompensa choruda. De resto, os elementos factuais ditos “falsos” por muita gente têm sido prontamente desmentidos no site “The Facts in 9/11”.

É filme para Americano ver? Provavelmente. É, afinal, na população norte-americana que Moore espera que o seu documentário faça o maior efeito. Propaganda? O Grande Dicionário da Língua Portuguesa do Círculo de Leitores define «propaganda» como sendo “Acção de propagar ideias, princípios, conhecimentos, teorias, divulgação, evangelização Associação encarregada de vulgarizar certas doutrinas”. Estranhamente, não vejo no filme a apologia de uma ideologia específica, nem a defesa de um partido em particular (Moore também nunca foi generoso com os democratas – vide “The Big One”) nem sequer uma divisão maniqueista do mundo em “bons” e “maus” – vejo, isso sim, uma crítica dura e impiedosa a uma administação e ao seu presidente. Crítica essa com que podemos concordar ou discordar (o filme NUNCA passa a ideia de que quem não concorda com as teorias expressas nele é estúpido!). De resto, que não haja dúvidas: o filme respeita todas as regras do documentário.*


Mas pondo estas questões de propaganda de parte, podiamos perguntar-nos se o filme tem ou não algum valor artistico, independetemente da mensagem que quer transmitir. Parece-me que, neste ponto, é que muita da crítica existente tem sido particularmente injusta, pois “Fahrenheit 9/11” consegue mesmo ser um belíssimo documenário. Desde a soberba sequência de créditos (onde vemos os membros principais da administração Bush a serem maquilhados como se fossem actores a prepararem-se para o início da peça), passando pela parte em que Moore tenta (sem sucesso) convencer membros do congresso a alistarem os seus filhos para a guerra no Iraque até ao plano final em que Bush se vê incapaz de dizer o velho ditado “Fool me once, shame on you; fool me twice, shame on me” que o estilo é provocador, extremamente crítico mas sempre lúcido e coerente. E francamente muito bem construído.

O filme consegue mesmo momentos belíssimos de montagem – quem o acusa de oportunista é porque deveria estar distraído durante a cena em que se “mostra” o embate nas Torres Gémeas dos aviões unicamente através do som e, posteriormente, de imagens de várias pessoas e olhar para off, onde a desgraça ocorreu. Cineastas menos habilidosos certamente não teriam resisitido à tentação de ir buscar as mais que revistas imagens dos choques – Moore escolhe a decência de nos poupar de tais obscenidades. Ninguém parece ter reparado nisso.


Há alturas onde Moore quase que pisa o risco – quando a mãe de um soldado morto no Iraque lê a última carta enviada pelo seu filho, perguntamo-nos por vezes se não estamos a entrar no campo do voyeurismo. A posteriori, parece-me que a escolha de Moore de colocar essa cena na íntegra faz todo o sentido, já que era necessário mostrar as consequências da guerra no Iraque, por muito dolorosas que fossem. Mas não esqueçamos outros momentos memoráveis/perturbantes do filme - o impasse de Bush ao ser informado de que o país está a ser atacado enquanto lia um livro infantil a um grupo de crianças (a voz-off de Moore, ao contrário do que já foi escrito por aí, não nos diz o que o presidente estava a pensar, apenas faz suposições baseadas nas suas expressões faciais...); a realidade desoladora da vida dos jovens "voluntários" que participaram na guerra do Iraque, bem como os curiosos métodos de recrutamento usados pelas instituições militares dos EUA para os convencer a alistar-se; o choque que é saber que a maioria dos congressistas que aprovaram o "Patriot Act" nem sequer o tinham lido; etc. Nestas sequências, como é típico na obra de Moore, o riso (irónico) vai de mão dada com a reflexão.

Mereceu a Palma d’Ouro? Na minha sincera opinião, sim, mereceu. Controvérsia... Que controvérsia?

Fahrenheit 9/11
Documentário, 2004, EUA.

Argumento e realização: Michael Moore
Produção: Michael Moore, Kathleen Glynn & Jim Czarnecki.
Produtores executivos: Harvey Weinstein & Bob Weinstein.
Dir. de Fotografia: Mike Desjarlais; Imagens adicionais: Kirsten Johnson & William Rexer.
Música: Jeff Gibs & Bob Golden.
Montagem:Kurt Engfehr, Todd Woody Richman & Chris Seward.

Disponibilidade:

O filme está actualmente em exibição nos cinemas portugueses.

*Já que falamos de propaganda, lembremos um pequeno episódio do passado. Howard Hawks filmou, logo a seguir ao ataque de Pearl Harbour, um filme de ficção chamado “Air Force - Águias Americanas”. Nele, os japoneses são retratados como sendo monstros - quando os seus aviões são abatidos por caças americanos o ambiente é de festa, e há até uma tentativa de comic-relief personificada num cachorrinho de nome “Tripoli” que, muito “sabiamente”, só ladra quando lhe dizem nomes japoneses como “Moto”. É propaganda no seu estado mais puro – há bons (os americanos) e maus (os japoneses), os maus são monstros imperdoáveis e desuhamanos, os bons são modelos de virtudes (e a única personagem que começa por não o ser acaba por se redimir lá para o fim) e, claro, o bem ganha sempre. Mesmo que essa vitória do bem consista em bombardear Tóquio... No entanto, é difícil encontrar hoje quem ouse dizer mal do filme e de chamar de faccioso a Howard Hawks. Afinal, o homem é (muito justamente) o génio por detrás de obras-primas como “Rio Bravo” ou “Os Homens Preferem as Loiras”. Pelo contrário, elogia-se a (inegável) qualidade técnica do filme, que é formidável sobretudo tendo em conta o ano em que foi produzido e a rapidez em que foi feito. E além disso, ninguém esquece que foram as cenas de combate de caças deste filme que influenciaram George Lucas na concepção dos brilhantes combates especiais entre Tie-Fighters e StormTroopers no seu mítico “A Guerra das Estrelas”. Do lado de propaganda já ninguém parece querer saber. O nome de Hawks é superior a isso tudo.

Dossier: A Questão Michael Moore (Parte I de VI)


O CineArte inaugura a sua secção de dossiers dedicados à obra de cineastas que, por uma razão ou por outra(s), merecem um destaque acrescido. Tentar-se-á, com estes dossiers, dar a conhecer a (quase) totalidade da obra de um determinado autor, dando a hipótese ao leitor de partir dos textos para um ou mais filmes. E começamos com uma escolha polémica – Michael Moore, o homem que tem como missão actual assegurar que George W. Bush não volte a ser eleito presidente dos Estados Unidos da América neste próximo Novembro.

Optou-se, neste dossier, por abordar unicamente a obra para cinema do documentarista oriundo de Flint, já que seria impossível (em termos temporais e financeiros...) escrever com a mesma consideração sobre os seus livros e sobre os seus trabalhos para a televisão.

Muito tem sido escrito sobre os filmes. Infelizmente, muito do que de negativo se afirmou sobre o seu último filme, “Fahrenheit 9/11”, tem nascido, um pouco à semelhança do que já acontecera com as suas obras anteriores, não só de diversas alegações de “manipulação dos factos” como, e isto muito mais gravemente, de um profundo desconhecimento do que é um documentário cinematográfico. Daí que, antes de continuar com este texto, convenha expor uma definição:

O documentário é um género que pressupõe uma visão subjectiva da realidade pela parte do seu autor, um ponto de vista nítido e sincero sobre uma determinada situação da actualidade. Não é uma reportagem e nem sequer se rege pelas leis do jornalismo (a primeira das quais, a objectividade no tratamento da informação - que mesmo no jornalismo televisivo de hoje em dia é mais que questionável...). É uma obra de arte, tão subjectiva como a mais honesta das ficções ou o mais rabiscado dos quadros.


Mas não vão por estas palavras. Michael Rabiger, autor do livro “Directing the Documentary” (1992, Focal Press) que é considerado uma leitura de referência nas escolas de cinema que leccionam o género do documentário, diz na sua obra lapidar que um filme documentário deve ser “ou um ensaio controlado e premeditado ou algo lírico e impressionista. Pode articular o seu significado principalmente através de palavras, imagens ou comportamento humano (...) O filme documentário reflecte um fascínio e um profundo respeito pela actualidade. É o exacto oposto do ‘escape entertainment’, estando comprometido com a riqueza e ambiguidade da vida tal como ela é”.

Nos seus documentários, Moore assume frontalmente a sua ideologia de esquerda. Embora diga que os seus filmes estão construídos de modo a entreter o espectador comum que pagou 10 dólares pelo bilhete de entrada, o certo é que estes oferecem muito mais do que umas quantas piadas dispersas por noventa ou cento e vinte minutos. Moore é um retratista da população da chamada “small-town America”, aquela que não tem qualquer expressão nos média ou nas artes norte-americanas, que só surge nos noticiários quando é vítima dos crimes de mão armada. As situações que aborda, como o crescente desemprego na classe média e as fraudes corporativas que passam incólumes, mostram uma nação de contrastes, que gosta de passar a imagem de que é o país mais rico do mundo e a “terra das oportunidades” mesmo que essa riqueza esteja longe de ser distribuída e que as oportunidades sejam só para alguns. São reflexões sobre “o Sonho Americano” feitas por alguém que soube ver nele o mais podre e, ironicamente, ser dos poucos privilegiados a vivê-lo.

Goste-se ou não, o certo é que Moore conseguiu uma proeza inegável, que foi atrair milhões de espectadores em todo o mundo para um género cinematográfico (o documentário) que geralmente tem grandes dificuldades em impor-se comercialmente perante as obras de ficção, isto quando consegue sequer chegar às salas de cinema. Os seus documentários geraram mais discussão e reflexão sobre a política interna e externa dos EUA do que muitos livros ou “reportagens objectivas” feitas para a imprensa escrita ou televisiva. E, no fim do dia, não será essa uma das mais nobres funções do cinema (e do cinema documental em particular), a de nos fazer discutir e reflectir sobre a nossa actualidade?


E goste-se ou não, é mais que certo que Michael Moore não ficará por aqui. A comprová-lo está o seu já anunciado próximo projecto de documentário “Sicko”, um filme que aborda o sistema de saúde norte-americano. Conhecendo a obra anterior do realizador, não é de esperar propriamente os maiores elogios pela parte do documentarista de Flint.

sexta-feira, agosto 06, 2004

Memorial: "Hiroshima, meu amor" de Alain Resnais

Faz hoje 59 anos que a humanidade assistiu a um dos actos mais hediondos da sua história. Um avião tristemente baptizado de "Enola Gay" sobrevoou a cidade de Hiroshima, o seu piloto alegremente largou uma das mais perversas invenções da ciência e, em poucos minutos, fez história no pior de todos os sentidos. Como a memória dos homens, por vezes, é curta, convém relembrar o acontecimento e um dos filmes que, de forma indirecta, melhor espelhou os "anos a seguir" à tragédia atrás descrita: o magnífico "Hiroshima, meu amor" de Alain Resnais.

Doze anos depois da tragédia, um homem japonês e uma mulher francesa têm um affaire na primeira cidade devastada pela bomba atómica. Ela é actriz, está de passagem pelo Japão para acabar de filmar um filme sobre a paz e regressar o mais rapidamente possível para Paris. Ele é um salary-man casado que sabe falar francês. Ambos sabem que a sua relação está condenada. No entanto, algo os une de uma maneira quase irracional. Ao passear por Hiroshima, ao abraçar-se ao seu amante nipónico, Ela irá fazer uma viagem pelas suas memórias, encontrando em Hiroshima e no homem de negócios nipónico ligações não tão estranhas com o seu próprio passado...

Com argumento da escritora Marguerite Duras ("Moderato Cantabile", "O Amante"), Alain Resnais cria um filme intimista e experimental que consegue ser das obras mais fascinantes tanto da argumentista como do realizador. Misturando o registo do documentário (o segmento inicial, com as várias fotografias de Hiroshima, dos seus destroços, das suas vítimas) com uma ficção soberbamente dirigida. É um filme "difícil" mas nunca vazio. As interpretações de Emmanuelle Riva e Eiji Okada são fabulosas, dando vida aos diálogos dificílimos de "ler" (pelo seu teor reflexivo e quase "teatral") de Duras. Mas atente-se também à soberba música de Georges Delerue e Giovanni Fusco, à magnifica direcção de fotografia de Michio Takahashi e Sacha Vierny e, como não poderia deixar de ser num filme de Resnais, ao trabalho de montagem engendrado pelo trio Jasmine Chasney, Henri Colpi e Anne Sarraute (e certamente também ao próprio Resnais). É uma verdadeira lição de cinema que nada tem a ver com o pretensioso "revisitar" do tema que Nobuhiro Suwa fez em 2001 no medíocre "H Story".

Numa altura em que convém manter as memórias do acontecimento bem vivas, nada como ver um filme que, revisitando a "cena do crime", aborda o modo como as nossas experiências pessoais moldam as nossas lembranças dos acontecimentos do passado.

Ele - Tu não viste nada em Hiroshima. (...)
Ela - Vi tudo. Tudo.
(...)
Ela -... do décimo quinto dia também. Hiroshima cobriu-se de flores. Havia por toda a parte centáureas e gladíolos e trepadeiras e lírios amarelos que renasciam das cinzas com um com um extraordinário vigor, até então desconhecido nas flores. Nada inventei.
Ele - Inventaste tudo.
Ela - Nada.


Hiroshima, meu Amor (Hiroshima, mon Amour)
Drama, 1959, França/Japão
Realizador: Alain Resnais
Argumento: Marguerite Duras
Elenco: Emmanuelle Riva, Eiji Okada, Stella Dassas, Pierre Barbaud, Bernard Fresson
Produção: Anatole Dauman e Samy Halfon
Dir. de Fotografia: Michio Takahashi e Sacha Vierny
Música: Georges Delerue e Giovanni Fusco
Montagem: Jasmine Chasney, Henri Colpi e Anne Sarraute

Disponibilidade:

Existe uma soberba edição em DVD da Criterion, mas nenhuma edição nacional. Pelo contrário, o argumento de Marguerite Duras está publicado em Português pela Quetzal Editores e recomenda-se.

segunda-feira, agosto 02, 2004

Notícias: "O Lugar do Morto" é lançado em DVD


Mais de três anos (!!!) passados após ter recebido subsídio pela parte do ICAM para ser transcrito para o formato digital, eis que finalmente chega ao mercado português o DVD da célebre longa metragem "O Lugar do Morto" de António Pedro Vasconcelos, editado pela Costa do Castelo.

A demora da edição ter-se-á devido a vários factores, entre os quais a dificuldade de obtenção de suplementos que enriquecessem a edição (na época da produção do filmes, até mesmo os "making-of" não eram comuns no cinema português...).

"O Lugar do Morto" é um dos mais míticos (e mais subestimados) filmes portugueses produzidos nos anos 80. Quando foi lançado nas salas, em 1984, causou sensação entre o público tornando-se o maior êxito de bilheteira obtido por um filme português até então (cerca de 278 mil espectadores, recorde só batido 13 anos mais tarde por "Tentação" de Joaquim Leitão). A razão deste êxito deveu-se não só às qualidades do filme, como também ao simples facto de se aventurar com uma inegável segurança por dois territórios pouco explorados no cinema português: o do policial e o do filme negro. É o próprio realizador, aliás, que diz que o filme é muito influenciado por Otto Preminger.

Como já foi aludido, o disco não é propriamente abundante em extras. Mas destaca-se a excelente qualidade da imagem (fabulosa para um filme de 1984) e um muito interessante audio-comment do realizador, que já nos brindara com uma boa lição de cinema na faixa de comentário de audio do DVD de "Jaime".

Com argumento de Carlos Saboga ("Aqui D'el Rei", "Jaime", "O Milagre Segundo Salomé") e António Pedro Vasconcelos, direcção de fotografia de João Rocha ("Perdido por Cem", "Oxalá" e "Paraíso Perdido" de Alberto Seixas Santos), montagem de Manuela Viegas ("Glória") e música de Alain Jomy ("Aqui D'el Rei", "Jaime"), bem como um elenco que conta com as presenças de Pedro Oliveira, Ana Zanatti, Ruy Furtado, Teresa Madruga, Lídia Franco, Natalina José, Carlos Coelho e Manuela de Freitas, "O Lugar do Morto" é um dos títulos essenciais da nossa cinematografia. O preço do disco é de €24.50. E vale a pena...
P.S. - Já agora, para quando uma edição em DVD de "A Balada da Praia dos Cães" de José Fonseca e Costa? É só uma ideia...

domingo, agosto 01, 2004

Museu temporariamente fechado para férias


Chega Agosto e é sempre a mesma coisa na capital. As pessoas que pouparam algum dinheiro fogem para fora (Algarve ou República Dominicana, se o objectivo é praia; Paris ou Nova-Iorque, quando se procura outra coisa...) e quem permanece por Lisboa fica a trabalhar, à procura de emprego ou a dar-se feliz por haver tantos lugares para estacionar o carro. Por outro lado, quem está de férias e procura passar o tempo livre nas salas escuras pode ter certas dificuldades em encontrar boas propostas uma vez vistos os "essenciais" (afinal, estamos na silly-season!). Em qualquer outra altura do ano, uma boa alternativa a um cartaz menos apelativo seria sempre a Cinemateca. Digo "em qualquer outra altura do ano" porque, como pode constatar quem visitar o site oficial do Museu do Cinema, as suas portas estão fechadas neste mês de Agosto!

A Cinemateca Portuguesa é uma das melhores instituições nacionais dedicadas à promoção da Sétima Arte em Portugal. Que disso não haja dúvidas. A sua rica programação, baseada num crescente arquivo que, se em 1989, contava com cerca de 800 longas metragens nacionais e estrangeiras (de acordo com João Bénard da Costa no seu livro "Os Filmes da Minha Vida - Os Meus Filmes da Vida), hoje tem um espólio bem mais considerável, tem feito as delícias de quem a tenha visitado nos restantes onze meses dos últimos anos. O preço acessível dos seus bilhetes; a bem apetrechada livraria da Ler Devagar (a única que parece verdadeiramente fazer juz à categoria de "Livraria de Cinema" em Portugal); o simpático café-restaurante, com a sua esplanada a servir as honras de projecções ao ar-livre nos meses de calor; as exposições periódicas; a biblioteca; a sala de projecções de DVDs... tudo isto são qualidades que quem já entrou no edifício situado na Rua Barata Salgueiro certamente não negará. Isto, claro, se o tiver visitado sem ser em Agosto!

Poderão dizer-me que Agosto é mês de férias e que os empregados da Cinemateca, como seres humanos que são, merecem um período de descanso como qualquer outra pessoa. Concordo absolutamente. Todos, dos projeccionistas à simpática senhora da bilheteira, passando pelos empregados do café e da livraria, merecem um mês de repouso.

O que não compreendo é porque é que a Cinemateca não contrata, nem que unicamente a título temporário, alguém que mantenha o funcionamento das instalações durante mais 31 dias (que nem chegam a isso, porque a Cinemateca ao domingo não tem projecções...). O país está com uma considerável quantidade de desempregados que, certamente de bom grado, fariam um bom trabalho por um ordenado mínimo; e mesmo que não estivesse, há sempre jovens (e não-tão-jovens...) que precisam de empregos em part-time no Verão. Muitos deles preenchem as qualificações mínimas necessárias para o funcionamento da Cinemateca e do seu equipamento (a programação poderia facilmente ser feita à priori pelas "autoridades competentes"). Porque não dar-lhes a oportunidade?

Pode parecer piquinhice insistir nesta questão. Mas o facto é que, para muita gente, a única altura do ano em que podem realmente visitar a Cinemateca é em Agosto. Falo daqueles que vivem fora de Lisboa ou que, vivendo na capital ou perto dela, passam o resto do ano minados por empregos ou cursos sufocantes que deixam pouco tempo para uma passagem pelo Museu do Cinema. Pensemos, aliás, neste último título. A Cinemateca, muito justamente, tem como nome alternativo "Museu do Cinema". E é-o. A preservação/conservação que tem feito de milhares de títulos nacionais e estrangeiros é um feito digno de todos os elogios e, verdadeiramente, uma actividade típica de qualquer bom museu. Mas não basta conservar os filmes - há que exibi-los, dá-los a ver tanto a "connaisseurs" como a "menos iluminados" que talvez apanhem o bichinho do cinema ao ver um ciclo de Billy Wilder ou de Ingmar Bergman. Nos outros meses, é isso que acontece. Quem quiser vê-los em Agosto descobrirá que não pode. O Museu está fechado para férias.

Conseguem imaginar que quem quisesse ver "As Tentações de Santo Antão" de Bosch no Museu Nacional de Arte Antiga durante o mês de Agosto chegasse às portas desta instituição e tivesse que se contentar por comprar um livro da Taschen para contemplar a obra-prima do pintor holandês? Pode parecer exagero, mas acho que esta "ficção" é em tudo comparável com o encerrar da Cinemateca em Agosto. Facto tanto mais chato quando se passa pelos sites da cinematecas de Paris ou de São Paulo e se vê a programação que têm agendada para este mês. Bem sei que são países com realidades económicas e sociais bem diferentes de Portugal. Acredito mesmo que seja o factor € o maior responsável pela não-actividade da Cinemateca am Agosto e não qualquer "má vontade" dos seus directores... mas custava «mesmo» assim tanto mantê-la a funcionar só mais um pouco?

Enfim, vemo-nos por lá em Setembro...