quarta-feira, janeiro 12, 2005

Os Melhores de 2004

O princípio do ano é sempre propício à criação de tops e, para compensar a inactividade do site, achei que talvez fosse interessante contribuir com os meus cinco cêntimos para as infindáveis listas de tops que por aí abundam. Assim sendo, o top a seguir apresentado assume-se como sendo inteiramente subjectivo e, como tal, aberto a todas as discordâncias. Provavelmente, amanhã teria feito um top com escolhas bastante diferentes, nem que fosse pelo simples facto de (ainda) não ter visto algumas das obras que mais marcaram a cinéfilia nesta ano passado (caso de, entre outros, “Finding Neverland” ou “Terminal de Aeroporto”). Para evitar as típicas (e injustas) comparações a que os tops se prestam, escolhi não pôr números antes dos filmes e, em vez disso, acompanhá-los de um pequeno texto a justificar a minha escolha. Escrito isto, venham os filmes:

“Lost in Translation – O Amor é um Lugar Estranho” de Sofia Coppola





Tocante, belo, poético, marcante, profundo, brilhante e comovente. São adjectivos que (não) bastam para classifcar Lost in Translation. Sofia Coppola conseguiu, com este filme, sair definitivamente da sombra do seu pai (e a sombra não é nada pequena!), dar a Scarlett Johansson o papel que faz uma carreira, dar a Bill Murray outro que consolida (e, para muitos, ressuscita esplendorosamente) a sua, e tornar Tóquio na cidade mais romântica do planeta. Melancólico sem ser tristonho, belo sem ser espalhafatoso, poético sem ser pedante, profundo sem ser obscuro, complexo sem deixar de ser de uma simplicidade espantosa. É uma daquelas raras maravilhas que nos faz lembrar por que é que começámos a gostar de cinema.

“2046” de Wong Kar-Wai



Pertence àquela categoria tão frágil e problemática que é a dos filmes que ou se ama ou se odeia. Eu amo-o, não há muito mais que se possa dizer. Wong Kar-Wai é o grande poeta-narrador das imagens, e este filme confirma-o como um dos maiores cineastas actualmente em actividade. “Sequela” do magnífico “In The Mood For Love – Disponível para Amar”, WKW pega na personagem principal dessa obra e aventura-se numa dura meditação sobre a mágoa e a dificuldade de sarar as cicatrizes emocionais. O resultado é de uma grandiosidade raramente vista. Mas não é só o realizador que brilha – como esquecer as interpretações de todo o elenco, a belíssima fotografia, a montagem, a música, etc? Não é por acaso que Sofia Coppola, ao receber o Oscar de Melhor Argumento Original, agradeceu a WKW – é tão fácil encontrar afinidades entre ambos os realizadores e as suas obras...

“The Eternal Sunshine of the Spotless Mind – O Despertar da Mente” de Michel Gondry




Sim, Charlie Kaufman é um dos grandes argumentistas actuais quer nos EUA como em todo o mundo. Mas nós já sabiamos isso (vide “Inadaptado”). E, no entanto, eis-nos de boca aberta perante a absoluta maravilha que é “The Eternal Sunshine of the Spotless Mind”, uma comédia genuinamente romântica e atípica que surpreende, mais do que pela sua imensa originalidade, pela sua grande honestidade. Uma montagem estonteante, uma direccção de fotografia que não lhe fica atrás, uma das mais inteligentes utilização de efeitos visuais de que há memória e um conjunto de actores absolutamente formidável são mais do que razões suficientes para ver o filme. Michel Gondry assina aqui uma obra bela, contando com inegável mestria uma daquelas histórias que conseguem a extraordinária proeza de nos fazer acreditar no amor, nem que seja só nos 108 minutos que o filme dura.

“Collateral” de Michael Mann



Não é pelo facto de constituir um passo importante na afirmação do vídeo digital como uma alternativa séria à película de 35mm que Collateral consta desta lista. É um facto que o HDV provavelmente nunca forneceu uma fotografia tão bela como aqui. Mas é todo o resto que nos deixa deslumbrados bem depois dos créditos terem passado no ecrã: o excelente argumento, a realização soberba, as interpretações (com Jamie Foxx e Tom Cruise maravilhosamente à altura um do outro)... e o final. Aquele final. Mann sabe, como poucos, que um thriller de acção pode ser uma obra pessoal e intíma, mas depois do grandioso tour de force que foi “Heat” parecia que nunca mais iamos ver algo parecido. Aqui está a prova contrária.

“O Regresso” de Andreï Zviaguintsev



As comparações com Tarkovski e Pudovkin podem ter sido repetidas até à exaustão, mas o facto é que serviram para chamar a atenção para um dos filmes Russos mais estimulantes dos últimos anos. Vencedor do Leão de Ouro em Veneza, a obra de estreia de Zviaguintsev chegou e impressionou pela sua simplicidade e grande segurança narrativa. É um cinema lento mas nada monótono, bonito mas pouco contemplativo, de aparência “fria” mas de um calor humano tremendo. Um grande exemplo de que o cinema dito “de autor” não tem que ser obscuro para ser interessante.

“Ser e Ter” de Nicholas Philibert



2004 foi um ano de afirmação do documentário nas salas lusas. E este foi um dos grandes títulos que tivemos a oportundidade de ver. Belo e simples tratado sobre a educação, Philibert filma uma turma de infantário do interior da França com uma delicadeza e uma descrição notáveis, evitando cair no erro de comover o público pelo simples acto de mostrar crianças a brincar e a sorrir para a câmara. Mostra, sem paternalismos ou moralismos baratos, que educar é muito mais do que deixar as crianças na escola e obrigá-las a fazer os trabalhos de casa. Houve quem dissesse que esta era uma obra a mostrar a todos os estudantes de pedagogia e educação – e apetece dizer que, realmente, muitos “educadores” portugueses têm tanta coisa a aprender com este filme.

“Fahrenheit 9/11” de Michael Moore



Outro título polémico. Considerado por muitos como um mero (e redundante) panfleto anti-Bush, o filme estreou e, ainda mais acentuadamente do que no anterior “Bowling for Columbine”, imediatamente dividiu o público. Porém, e agora que passou todo o frenesim e a polémica em torno da “parcialidade” do filme, da veracidade do material apresentado e da justeza da atribuição da Palma de Ouro em Cannes, creio que há que olhar com mais atenção (e sem preconceitos ideológicos ou políticos) para a obra que Moore construiu – e encontraremos aqui uma obra documental extremamente pessoal, porque subjectiva e fortemente opinativa, de uma potente e rara eficácia. Não teve o efeito eleitoral com que o realizador sonhava, é um facto. Mas quem quiser, daqui a um século, tentar perceber o que foi exactamente o clima político norte-americano na era Bush terá necessariamente que passar por aqui. Nem que seja para ver que, por vezes, um David pode mesmo dar luta a um Golias...

“21 Gramas” de Alejandro Gonzales Iñarritu



Parecia impossível que após uma grandiosa primeira-obra que, praticamente, obrigou o mundo a pôr os seus olhos no cinema mexicano, o mesmo realizador viesse a criar um filme tão dramaticamente poderoso e igualmente marcante. Mas conseguiu. E de que maneira! Que dizer de um filme onde um trio de actores está sempre (sempre!) no campo do genial? Que dizer de um argumento e de uma realização de um humanismo pura e simplesmente tocante? Que dizer de um dos mais brilhantes trabalhos de montagem dos últimos anos? Simplesmente que é daqueles casos em que tem de se ver o fillme para crer nele...

“Kill Bill 2 – A Vingança” de Quentin Tarantino



Se restavam dúvidas sobre a genialidade do opus 4 de Quentin Tarantino, esta segunda-parte veio definitivamente enterrá-las! Após o exercício estilistico do primeiro filme, Tarantino agarrou nas mesmas personagens e tornou-as não larger than life, mas pura e simplesmente as big as life itself. Não é um filme (só) para localizar referências cinéfilas e passar um bom bocado – é também um drama muito, muito poderoso.

“Tokyo Godfathers – Padrinhos de Tóquio” de Satoshi Kon



Lançado directamente para vídeo em Portugal, a terceira obra de Satoshi Kon veio confirmá-lo como um dos grandes realizadores de animação japonesa contemporânea, apresentando aqui o conto de natal mais original e francamente divertido do ano! Não é, porém, nas áreas técnicas (por muito impecáveis que sejam) que o filme nos deslumbra: é antes o argumento, as personagens minuciosamente construídas e a profunda humanidade de Kon no tratamento da sua história que fazem com que esta obra se torne de (re)visionamento obrigatório na noite da consoada (e não só!). O DVD anda por aí nas estantes das lojas, e é uma das melhores surpresas que estão à espera de serem descobertas por toda a gente que, simplesmente, goste de cinema, seja ele de live-action ou de animação.