domingo, novembro 28, 2004

Nippon Koma - 2nd Edition



Começa amanhã, dia 29, a segunda edição da mostra de cinema documental e animação japonesa Nippon Koma na Culturgest. Ao preço módico de 2€ por bilhete, aqueles que visitarem as salas da CG até dia 4 de Dezembro poderão ver um conjunto bastante diversificado de títulos.

Há que destacar, de entre os vários filmes em cartaz, a exibição de um conjunto de curtas-metragens assinadas pelo lendário Osamu Tezuka (autor de obras marcantes como "Black Jack", "Tetsuwan Atom - Astro Boy" e "Buddha", «pai» das linguagens gráficas e narrativas do manga moderno, bem como um dos grandes realizadores e impulsionadores da industria de animação nipónica), sendo estas exibidas dia 30 de Novembro e 3 de Dezembro. Pela raridade das mesmas, e pela já mencionada importância histórica de Tezuka, é uma sessão a não perder por nada!

Entre os outros títulos em exibição, o documentário "Otaku" de Jean-Jacques Beineix e Jackie Bastide deverá ser de grande interesse, já que aborda um tema muito actual da sociedade japonesa - a vida dos chamados "fãs obsessivos" que vivem unicamente para a sua paixão, seja ela a animação, o cinema, os videojogos, pop-idols, etc. Todos os filmes exibidos estão legendados em inglês, sendo de prever que as versões apresentadas serão as originais japonesas.

Lamenta-se, porém, que tenha sido retirado da programação original o filme "Ghost in the Shell 2 - Innocence" de Mamoru Oshii, a célebre e polémica sequela do original "Ghost in the Shell - A Cidade Assombrada", uma das longas-metragens de animação mais marcantes da década de 90. "Inocence" causou algum barulho em Cannes, onde foi promovido como sendo uma obra revolucionária, mas cuja projecção oficial acabou por deixar muita gente desiludida. Ainda assim, não deixa de ser um dos títulos de animação mais aguardados do ano, e é uma pena saber que não teremos hipótese de o ver, pelo menos, tão cedo. Já é a segunda vez que a Nippon Koma vê um dos filmes anunciados ser removido da programação, já que no ano passado o maravilhoso "Sennen Joyu - Millenium Actress" de Satoshi Kon também não chegou a ser projectado apesar de ter sido anunciado nas primeiras versões do programa. Infelizmente, desde então a única maneira de vermos o dito filme em território português tem sido através da compra do DVD zona 1, via importação nas lojas especializadas ou pela net. Esperemos que o "Innocence" não tenha o mesmo destino, sobretudo quando se sabe que a sua distribuidora para o Ocidente é a mesma (a Dreamworks...). De qualquer modo, este acto não tira mérito às restantes obras que vão ser projectadas, portanto, continua a ser um evento que vale bem a pena visitar!


Aqui fica a programação, retirada directamente do site oficial:

29 de Novembro

18h30
Winter Days, 2003
de Kawamoto Kihachiro
1h45 · animação

21h30
Otaku, 1994
de Jean-Jacques Beineix
1h17 · documentário



30 de Novembro

18h30
Tales of a Street Corner, 1962
Pictures at an exhibition, 1966

Jumping,
1984

Broken Down Film
, 1985
de Tezuka Osamu
1h24 · animação

21h30
Knocking on Heavens’s door - Kamagasaki, 2002
de Brice Pedroletti
1h02 · documentário



1 de Dezembro


18h30
Conjunto de animações de Akagi Takanori, Nagata Naomi, Hanahiro Junko, entre outros.
1h34 · animação

21h30
Dream Girls, 1993
de Kim Longinotto e Jano Williams
50' · documentário


2 de Dezembro

18h30
Dream Girls, 1993
de Kim Longinotto e Jano Williams
50' · documentário

21h30
Conjunto de animações de Akagi Takanori, Nagata Naomi, Hanahiro Junko, entre outros.
1h34 · animação



3 de Dezembro

18h30
Knocking on Heavens’s door - Kamagasaki, 2002
de Brice Pedroletti
1h02 · documentário

21h30
Tales of a Street Corner, 1962
Pictures at an exhibition, 1966

Jumping,
1984

Broken Down Film
, 1985
de Tezuka Osamu
1h24 · animação


4 de Dezembro

18h30
Otaku, 1994
de Jean-Jacques Beineix
1h17 · documentário

21h30
Winter Days, 2003
de Kawamoto Kihachiro
1h45 · animação



sábado, novembro 20, 2004

Not Dead Yet...

Não, ao contrário do que possa parecer, o CineArte não fechou as portas. Nem por sombras. Simplesmente acontece que, como já foi aludido num dos posts anteriores, a minha incapacidade de gerir o (pouco) tempo livre das aulas não tem permitido com que o site tivesse actualizações dignas desse nome. Daí que, durante um mês inteiro, isto não se tenha mexido. Porém, espero nesta próxima semana ir pondo aqui novos textos que, de uma forma ou de outra, compensem o tempo perdido.

Um honesto "obrigado" a todos os que, apesar da inactividade do site, o têm visitado e... bem, fiquem para ver os updates!

domingo, outubro 10, 2004

DVD killed the Video star


Outro dia, depois de uma jornada de aulas particularmente cansativa, decidi dar um salto pelo meu videoclube para alugar um filme que sabia que tinham em catálogo - "Terror na Ópera" de Dario Argento.

Chego lá e deparo-me com uma situação que me deixou um tanto despedaçado - um cartaz com a inscriçao "Liquidação Total de videocassetes - €1 por VHS" junto a uma prateleira com todas as VHS que o videoclube costumava ter, sendo que estas não estavam ordenadas nem por ordem alfabética, nem por género nem por nada. Não perguntei as razões por esta liquidação ao rapaz que estava na caixa, mas também não era preciso - bastava olhar para as restantes prateleiras para ver que o DVD estava a reclamar a totalidade da loja, e o VHS, formato há muito condenado a sucumbir ao disco digital versátil, tinha finalmente hasteado a bandeira branca. Infelizmente, parece-me.

Faço parte de uma geração que nasceu e cresceu com o VHS. Vi uma grande parte dos filmes que formaram a minha cinéfilia neste formato, e algumas das memórias mais ternas da minha infância são daqueles momentos em que passava largos minutos com os meus pais e o meu irmão a escolher quais os dois filmes de três dias que iamos levar para casa. Através das cassetes do videoclube, conheci os clássicos de Hitchcock, Eisenstein, Kubrick ou Coppola; os filmes de terror de série B e os de culto de Sam Raimi ou John Carpenter; os grandes "blockbusters" e os filmes "de autor"; as comédias geniais e as intragáveis; algumas das mais variadas séries de animação; e até títulos que hoje considero mediocres mas que na altura me encantaram! Custou-me tremendamente ver aquelas cassetes, muitas das quais me lembro de ter tido em casa numa altura ou noutra da minha vida, estarem agora a serem desprezadas e dispensadas ao preço de dois cafés. É a ordem natural das coisas, claro - afinal, ainda me lembro daquelas estranhas cassetes (que vim a descobrir chamarem-se BETA...) terem também desaparecido de um dia para o outro das poucas prateleiras em que se encontravam. Talvez por nunca terem feito parte da minha vida, não me custou nada vê-las sumir das estantes. Mas com o VHS...

Não é que não estivesse à espera que isto viesse a acontecer. Mas creio que uma das funções que um videoclube deve(ria) ter é a de arquivo cinematográfico local, como que um "banco de memórias" sempre acessível a todos por um preço irrisório. Ao desembaraçarem-se daquelas VHS, não é só das fitas magnéticas e das caixas de plástico que se estão a livrar, mas também de todo um conjunto incalculável de títulos que dificilmente voltaremos a ver em DVD, pelo menos em Portugal. É uma certa memória (ou imaginário) colectiva que desaparece. E isso não consigo deixar de achar lamentável.

Lá encontrei e comprei o "Terror Na Ópera", numa edição da já exinta Videotime. Só uns dias mais tarde é que pude ver o filme. E então, o efeito nostalgia fez-se sentir: os avisos do copyright, as trailers de filmes relativamente conhecidos misturadas com as de títulos quase totalmente obscuros, as legendas ultra-grossas, a qualidade de imagem nunca impecável devido aos fracos telecinemas que se realizavam na altura (mas que deixaram um "charme" incrível em certos filmes), o genérico final recheado de riscos graças aos leitores de vídeo deficientes por onde terá passado a cassete... Creio que percebi, nos 90 minutos de duração do filme, o que é que os apologistas do LP sentem quando dizem que o CD pode ser maravilhoso, mas que o disco de vínil terá sempre o seu encanto...

terça-feira, outubro 05, 2004

La Rentrée...


Amanhã regresso à condição de estudante activo, e começo logo às nove e meia da manhã com uma aula de Realização, ainda por cima! O que isto quer dizer é que é possível que os updates ao blog venham a escassear ainda mais do que é habitual - o triste facto de quase todos os dias ter aulas até às 20h 30m também não ajuda! No entanto, prometo fazer um esforço para ver se consigo que o blog não ganhe pó e vá merecendo as visitas que recebe, portanto, para utilizar pela enésima vez esse slogan tão batido, «estejam atentos»!

Entretanto, escolhi passar parte do meu último dia de férias a rever essa obra-prima da 7ª arte que é "Lost In Translation" de Sofia Coppola. Poucos filmes conseguiram tocar-me tanto quanto este. Já faz parte da minha lista de filmes da minha vida, e como este post é suposto ser breve, não me vou alongar a comentá-lo. Simplesmente vão por mim que é lindo. É um belo "beijo" de rentrée... e um belo e misterioso sussurro tambem.

segunda-feira, outubro 04, 2004

Comentário (sobretudo) sobre a narrativa de "A Vila"

"A Vila" (The Village) é um filme que suscitou, aquando do seu lançamento nas salas, uma divisão tremenda entre os que o viram- ora uns o defendiam como a melhor obra do seu cineasta e a prova de que este é muito mais do que um dos novos mestres do suspense, ora outros diziam que o filme falhava totalmente. Não acho que me encontre em nenhum destes polos opostos, mas o certo é que, até agora, "A Vila" é o desapontamento do ano, pelo menos para mim. Antes de continuar, há que dizer que sou fã da obra de M. Night Shyamalan e que esperava este "A Vila" com grande ansiedade. Acredito que o cineasta é um dos mais interessantes realizadores contemporâneos a trabalhar nos EUA, e basta olhar para o resto dos seus filmes para perceber que Shyamalan não é de todo um tarefeiro confortavelmente instalado no sistema de Hollywood mas sim um Autor, com um universo muito pessoal e dotado de uma grande capacidade de falar com o público. Como muitos outros, adorei "O Sexto Sentido", gostei bastante do "Unbreakable - O Protegido", e achei que o "Signs - Sinais" fazia todo o sentido e que foi muito subestimado pela crítica.


No entanto, não consigo olhar com a mesma satisfação para "A Vila". O seu principal defeito não é, como muitos já escreveram, o facto de não ser verdadeiramente um filme de terror carregado de "twists" e momentos de arrepiar como os títulos anteriores - aliás, até diria que a primeira parte do filme contém momentos de puro horror muito bem construidos que fazem perceber que Shyamalan não perdeu o seu toque. A questão fundamental está no argumento. É impossível descrever as falhas deste sem estragar o enredo do filme, portanto, aconselho a quem ainda não o viu e quiser desfrutar plenamente da história a saltar os próximos quatro parágrafos. Os restantes estão avisados...

- SPOILER ALERT -

Se olharmos bem, o cerne da história tem uma premissa genial - a ideia de, em pleno século XXI, existir uma aldeia escondida do resto do mundo numa reserva natural concebida por um grupo de anciãos que visa manter a inocência e pureza dos seus aldeões (que permanecem na ignorância e pensam que vivem no século XIX) isolando-os lá usando, para os assustar, uma mitologia da existência de monstros na floresta que os cerca é, de facto, uma brilhante setup para um filme, podendo até ser vista como uma metáfora de uma América que, nos dias de hoje, prefere isolar-se do resto do mundo no seu "combate ao terror/mal" de modo a preservar a sua "inocência" das mãos de "monstros da floresta" criados pelos seus próprios dirigentes unicamente para sustentar uma sociedade baseada no medo constante. A ideia de alguém vir perturbar a normalidade daquela aldeia ao desconfiar que "há segredos por todo o lado" e ao desejar entrar na floresta também é fabulosa. O problema é o modo como Shyamalan desenvolve estas ideias. Para começar, o romance entre o solitário Lucius (Joaquin Phoenix) e a cega Ivy (Bryce Dallas Howard), que será o verdadeiro ponto de partida para o conflito dramático do filme, é inserido quase a pontapé na narrativa, não nos dando tempo para conseguir achar aquela relação real. Sabemos que, quando eram miúdos, gostavam muito um do outro e é desses tempos que remonta a sua paixão actual mas, para além de uma cena (das melhores do filme) em que Lucius salva Ivy de um dos "monstros", não vemos aquela relação crescer nem nos é (suficientemente) dada a ideia de que ali estava uma "paixão contida" estabelecida há anos. O triângulo amoroso com Noah (Adrien Brody, em grande forma) é uma concepção infeliz, e não consigo de deixar de achar de muito mau gosto a ideia de fazerem de um atrasado mental o antagonista de Ivy, isto para não falar na ridícula cena em que os anciãos descobrem que Noah encontrou um fato de monstro debaixo do soalho da casa de castigo - caramba, tinha LOGO que ser ali que o iam esconder???

Quem realçou como característica autoral de Shyamalan os twists narrativos que tão bem resultaram no "Sexto Sentido", no "Sinais" e até no "Unbreakable", vai encontrar aqui um exercício muito menos eficaz dos mesmos. A revelação de que toda aquela sociedade é uma farsa (o principal twist) surge cedo de mais na história, não é um «murro no estômago» tão forte quanto poderia ser e deixa os restantes minutos do filme sem a grande tensão de suspense que até então fora construida. Quando Ivy chega ao exterior da reserva, por exemplo, as cenas carecem de alguma força dramática porque aquilo que vemos não é verdadeiramente chocante nem revelador - o que ressalta é o efeito cómico das reacções estupefactas do polícia! O outro twist (o ataque de Noah vestido de monstro, que durante alguns segundos faz-nos crer que, afinal, sempre há demónios na floresta) é um «cheap-shot» que se revela froxo e pouco imaginativo, como se tivesse sido inserido para dar alguma dinâmica a uma situação, de resto, pouco interessante.

Igualmente, a personagem fulcral de Walker (William Hurt) é muito pouco credível - quem consegue acreditar que um "avôzinho" tão querido, doce e simpático seja a mente perversa por de trás de um esquema tão diabólico? Nunca conseguimos não simpatizar com aquela personagem que passa grande parte do tempo a gabar as virtudes de Lucius, nem vislumbrar nele um lado perverso capaz de arquitectar toda aquela farsa. Aliás, se o romance entre Lucius e Ivy parece forçado, já a relação entre Walker e Hunt (Sigourney Weaver) parece ser a mais convincente e interessante de todo o filme - e por isso mesmo é uma pena que o realizador não lhe dê mais atenção. Como também é pena que o amigo de Lucius (aquele que faz a vigia da aldeia) desapareça da história a certa altura sem deixar qualquer rasto - era dos poucos elementos que verdadeiramente humanizava a personagem de Lucius.

Por fim, Shyamalan escolhe encerrar o filme com um final em aberto não muito feliz. O problema assenta no facto do realizador ter-nos deixado com perguntas que, a meu ver, precisavam pelo menos de algo que nos deixasse uma sugestão do que iria acontecer muito depois do rolar dos créditos. Podia ficar no ar qual a maneira como os aldeões reagiriam à descoberta de que a vida que tinham tido até então era uma pura encenação, mas a questão é que nem nos é dado a saber se eles alguma vez descobrirão isso (a cena final, com os anciãos a debaterem o assunto e Ivy a fazer o seu regresso, não sugere nem que a "verdade vá ser dita" nem que tudo vá ficar na mesma - não sabemos sequer se Ivy tem intenções de contar tudo aos aldeões!). Daí que, mesmo como uma eventual crítica política, acabe por se revelar ineficaz. E, como história de amor, pouco comovente.

- SPOILER END -

Acrescentemos a isto alguns diálogos francamente maus ("The world moves for love. It kneels before it in awe!") e uma música de fundo que alterna entre a muito bem colocada e a excessivamente presente, e temos um filme que poderia ter sido mesmo muito melhor. Naturalmente, existem pontos positivos que convém realçar: Bryce Dallas Howard é uma verdadeira revelação; a direcção de fotografia de Roger Deakins dá uma beleza visual enorme à pelicula e, juntamente com um trabalho de direcção de som várias vezes soberbo, cria o ambiente necessário. O guarda-roupa, a direcção de actores e a art-direction também são factores muito positivos a ter em conta.



Um passo em falso. Mas Shyamalan não deixa de ser um realizador de enorme talento, e o seu próximo filme, que já garantiu ser consideravelmente diferente de todas as obras anteriores, promete dar-nos a ver novas qualidades do autor de "O Sexto Sentido".

Bloco de Notas: Clássicos Americanos no Público

Descobri, ao ler um post no Moviesuniverse, que a Série Y do Público terminou para dar lugar a uma nova colectânea de filmes, sendo esta dedicada ao cinema clássico Norte-Americano. Os filmes são, no fundo, uma reedição a baixo preço de vários títulos do vasto e rico catálogo da Costa do Castelo.

Trata-se de uma iniciativa que de certo agradará a todos os cinéfilos portugueses. Agora que a RTP 2 (err, desculpem, "A 2") mantém-nos alimentados com uma dieta de «um» filme por semana, sendo a escolha do título em questão relativamente aleatória (pelo menos assim parece), é bom saber que sempre há uma outra via de acesso para vermos ou revermos algumas das obras que fizeram história e marcaram gerações de cinéfilos e cineastas em todo o mundo. Além disso, agora que filmes como "O Mundo a Seus Pés" ou "Suspeita" estão disponiveis a um preço acessível, já não há desculpas para não os incluirem na vossa colecção!

Para mais detalhes e para consultarem a lista completa dos títulos que vão ser editados, visitem o site oficial da colecção.

Fonte: Moviesuniverse.

sexta-feira, outubro 01, 2004

Bloco de Notas: lista de candidatos admitidos à Escola Superior de Teatro e Cinema

Já sairam os resultados das candidaturas ao curso de cinema da Escola Superior de Teatro e Cinema. Embora a lista apresentada não esteja devidamente ordenada, fazendo as contas dá para perceber quem entrou e quem ficou de fora. Para quem vai agora fazer o seu primeiro ano do curso, os meus sinceros parabéns e espero que a passagem pela escola resulte em muitos e bons filmes! Para os que não entraram, não há que desanimar: perdoem os lugares comuns, mas (sem cinismos) acontece aos melhores, há sempre o próximo ano e, além disso, lembremo-nos que Rainer Werner Fassbinder não passou o exame de admissão na Escola e Cinema de Televisão e, hoje, é «só» considerado um dos maiores cineastas alemães de todos os tempos!
De qualquer modo, uma boa rentrée a todos!

sábado, setembro 25, 2004

Evento: Indie Lisboa - Festival Internacional de Cinema Independente de Lisboa



A notícia já vem tarde, mas de qualquer maneira convém relembrar que começou ontem a primeira edição do Festival Internacional de Cinema Independente de Lisboa, um evento organizado na capital pela Associação Zero em Comportamento, os mesmos senhores que nos prestaram alguns ciclos memoráveis nas saudosas sessões de culto das quais o Cine-Estúdio 222 costumava ser palco. A programação está disponível em formato .pdf no próprio site, sendo de destacar a homenagem ao Festival de Cinema de Sundance.

O surgimento deste festival é uma autêntica lufada de ar fresco no panorama lisboeta, que antes desta iniciativa tinha como único ponto de referência o Festival de Cinema Gay e Lésbico de Lisboa (que, aliás, termina hoje a sua oitava edição). Esperemos que a adesão ao novo festival seja significativa para que, assim, este possa continuar, crescer e oferecer todos os anos novas e cada vez mais aliciantes propostas.

segunda-feira, setembro 20, 2004

Surpresas agradáveis: "Amor e Dedinhos de Pé" de Luís Filipe Rocha


A colecção de DVDs "Série Y" lançada no jornal "O Público" chegou recentemente ao seu fim, e calhou que o filme proposto para encerrar (definitivamente?) a colectânea fosse português. Como já é tradição, foi escolhido um título do catálogo da MGN Filmes, sendo este assinado por Luís Filipe Rocha, que já vira três outras obras suas ("Adeus, Pai", "Sinais de Fogo" e "Camarate") serem editadas na mencionada colecção.

"Amor e Dedinhos de Pé" foi o filme que marcou o regresso à sétima arte de Luís Filipe Rocha depois de um período de passagem por Macau em que não assinou qualquer obra. Adaptando, com a colaboração de Izaías Almada, o romance homónimo de Henrique Senna Fernandes, este retorno do realizador de "Cerromaior" não costuma ser o título mais referenciado quando se fala da sua carreira cinematográfica. Injustamente, parece-me: "Amor e Dedinhos de Pé" não só ilustra perfeitamente as preocupações de Luís Filipe Rocha na construçãoo de uma narrativa interessante e coerente como é, na minha opinião, o seu melhor filme.


A história situa-se em Macau, nos primeiros anos do século XX. Francisco Frontaria (Joaquim de Almeida), um bon-vivant filho de uma família prestigiada, passa a vida na borga com o seu circulo de amigos: de apostas manhosas, jogos de adultério e destruição de casamentos, tudo parece valer para fazer o tempo passar agradavelmente. O seu encontro com Victorina Vidal (Ana Torrent), a "Mulher mais feia de Macau", vai inicialmente não passar de uma birra entre os dois. Porém, as consequências das acções de Frontaria vão fazer com que ambos se voltem a cruzar, anos mais tarde, em circunstâncias muito diferentes. Circunstâncias que obrigarão duas pessoas aparentemente tão diferentes a entender-se e, também, a descobrirem-se melhor um ao outro...

Esta "aventura" macaense pressupunha vários riscos de produção. Riscos esses largamente ultrapassados: nunca se nota qualquer limitação de produção ou constrangimento orçamental na construção narrativa do filme. Não há "planos a menos" ou cenas tecnicamente mais fracas que destoem do conjunto. E a dobragem dos actores estrangeiros não distrai, o que é sempre de louvar numa co-produção.


O que surpreende no filme é a enorme qualidade de tudo o que o constitui: a belíssima fotografia de Eduardo Serra, as interpretações excelentes dos actores (e tenhamos em conta que Joaquim de Almeida e Ana Torrent têm cenas em que falam cantonês durante minutos a fio!), o mais que fiel trabalho de reconstituição da época, a realização segura e dinâmica. É uma história bem contada, com uma grande beleza visual, uma técnica impecável e um trabalho dramático bem acima da média.

Defeitos? O final é talvez o ponto mais frágil do filme, já que parece ter sido "feito a despachar". Sabe-se que o realizador e o argumentista optaram por escrever um final menos "delicodoce" e mais em-aberto do que aquele que se pode ler no romance, mas a cena final acaba por revelar-se demasiado abrupta. E o título do filme não é propriamente apelativo. No entanto, para quê ligar a estes pormenores quando tudo o que veio antes é do mais estimulante que a nossa cinematografia tem para oferecer?

Por €8.90, parece-me mesmo muito pouco...

quinta-feira, setembro 09, 2004

Chamada de atenção: "Chungking Express" em DVD na Premiere



Quem comprar a edição de Setembro da Premiere portuguesa, e não se importar de gastar mais uns miseros dez euros, vai receber um excelente presente cinematográfico: trata-se do DVD do maravilhoso "Chungking Express" de Wong Kar-Wai.

É difícil falar de um filme sobre o qual parece que (quase) tudo já foi escrito. Filmado num espírito de guerrilha completamente apaixonante, "Chungking Express" liga duas histórias de "amor solitário" passadas na cidade de Hong-Kong. Numa das histórias, um polícia de coração recentemente despedaçado passa os dias a tentar perceber porque foi deixado pela sua antiga namorada, enquanto vai devorando latas após latas de ananás prestes a ficar fora-de-prazo. Num acto de puro impulso, promete apaixonar-se pela primeira mulher que entrar no bar onde consola as suas feridas emocionais. A questão é que essa mulher acaba por ser uma passadora em fuga... Na segunda história, um outro polícia de coração recentemente despedaçado torna-se o objecto de adoração de uma empregada do "Expresso Chunking", um carrinho-ambulante onde o mencionado polícia costuma ir comprar o seu almoço. Ao som constante de "California Dreamin'" dos Mamas and Papas, a rapariga vai, aos poucos, entrando na vida do polícia, mesmo que não o faça pelas maneiras mais tradicionais... Tudo isto "pintado" através da belíssima fotografia de Christopher Doyle, interpretado por um elenco extraordinário e brilhantemente contado pelo Mestre de uma certa narrativa-poética que é Wong Kar-Wai.

Há quem tenha comparado este filme com "O Acossado" de Jean Luc-Godard. WKW não nega a homenagem, e julgo que a comparação é mais que justa. Como alguém escreveu no guia de filmes da Time-Out "This is what Godard movies were once like: fast, hand-held, funny and very, very catchy".

A edição portuguesa da Atalanta Filmes não tem quaisquer extras à excepção de trailers para este filme e para o "Fallen Angels", mas talvez servirá de consolo saber que não existem edições estrangeiras muito melhores (havia uma britânica ou americana que continha uma pequena introdução por Quentin Tarantino, mas nada mais). Por €12.50, é um crime passar ao lado deste filme magnífico!

Uma obra-prima em absoluto, a ver (de preferência) numa sessão-dupla com a sua semi-sequela, o extrarodinário "Anjos Caídos".

P.S. - Tanto o DVD de "Chungking Express" como o de "Anjos Caídos" estão à venda em Portugal ao preço confortável de €14,49. Portanto, se não conseguirem arranjar o primeiro pela Premiere e/ou quiserem revisitar a Hong-Kong de WKW, sempre têm bom remédio...

P.P.S. - Se tudo correr bem, quando "2046", o novo filme de WKW, chegar às salas portuesas, voltarei a este "Chungking Express" (e a outros filmes) para um texto maior e melhor sobre o cineasta de Hong-Kong e a sua obra...

Desconte-se o público!

Ao que parece, as exibidoras portuguesas já estão a reagir mal à Nova Lei do Cinema. O busilis da questão assenta na alínea da lei recentemente aprovada que dita a aplicação de uma taxa de 2% sob o preço dos bilhetes de cinema, sendo que os distribuidores são obrigados a investir (livremente) essa montante na produção nacional de cinema e/ou audiovisual.

De acordo com o noticiário da SIC Notícias, os distribuidores e exibidores estão a ponderar algumas medidas para lidar com esta sua nova obrigação. Uma delas passa pelo aumento do preço dos bilhetes (que, assim, ultrapassaria os já indesejáveis 5 euros) e a outra pela extinção dos descontos dos bilhetes à segunda-feira.

Qualquer uma destas soluções é, a meu ver, alarmante. O objectivo da Nova Lei (pelo menos na teoria) é o de dinamizar o sector do cinema português e tornar os distribuidores nacionais em investidores activos e com poder de decisão no que diz respeito aos montantes que investem. O problema é que subir o preço dos bilhetes ou acabar com os descontos de 2ª feira só resultará num afastamento incalculável das salas de cinema pela parte do público.

Os descontos de 2ª feira (bem como os provenientes dos cartões que o fornecem, como o Cartão Jovem) e o preço relativamente acessível dos bilhetes (abaixo de uma boa parte dos restantes países europeus) têm sido factores cruciais no crescimento diversificação da oferta cinematográfica em Portugal. Ainda assim, se actualmente um "português médio" já tem dificuldade a desembolsar cinco euros por um bilhete e, portanto, tem tendência a ir ver os filmes "de que está habituado a gostar" (ie: blockbusters e grandes produções americanas) em vez de experimentar algo de novo ou do qual tem uma imagem não muito boa (ie: os filmes portugueses!); com o aumento do preço dos bilhetes, menos o espectador arrisca, menos público tem o cinema português e as restantes cinematografias mundiais. E o fundo de investimento acaba por cair em saco roto...

quarta-feira, setembro 01, 2004

"Spartan - O Rapto"


Scott (Val Kilmer), um agente das forças especiais norte-americanas, é destacado do seu actual posto de treinador de soldados debutantes para participar numa missão muito particular: resgatar a filha do presidente dos EUA, que foi raptada quando o seu guarda-costas não lhe estava a prestar atenção, sendo que o seu resgate tem que ser realizado o mais rápido possível pois, no fim de contas, as eleições estão à porta... A investigação que se segue, porém, vai revelar que o que está em jogo é muito diferente daquilo que se esperava.

A sinopse atrás apresentada poderia sugerir que "Spartan" se trata de um banalíssimo filme de acção saído das majors norte-americanas, pronto a ser visto e esquecido pelos espectadores de fim-de-semana como mais um blockbuster oco e vazio de conteúdos, mas cheio de explosões, tiros, perseguições de automóveis e mulheres de corpos esculturais. A trailer também dá essa sensação. Mas há um nome na ficha técnica que nos convida a olharmos com (bem) mais atenção: David Mamet.


É a pista certa para entrarmos no filme. Não é a primeira vez que o célebre dramaturgo/encenador e argumentista/realizador experimenta a sua mão no thriller (veja-se o hitchcockiano "House of Games - Jogo Fatal"), e se pensarmos que muitos dos deliciosos (e ácidos) diálogos de "Manobras na Casa Branca" de Barry Levinson são da sua autoria, não é de admirar que este seu regresso ao género surja temperado com uma dose bem forte de crítica política. De facto, "Spartan" não é só um thriller emocionante e extremamente bem construido - é, também, uma reflexão irónica sobre o actual clima político norte-americano, sobre a ilusão das aparências (um tema muito querido a Mamet), sobre a degeneração da família tradicional, sobre a manipulação política a e obediência cega imposta pela instituições militares aos seus soldados. Nesse sentido, a invocação da mitologia do rei Leónidas de Esparta (que enviava um só homem para atacar de surpresa os seus adversários em detrimento de mandar batalhões inteiros) na figura de Scott resulta tanto mais poderosa.

À semelhança de "Jogo Fatal", o argumento é construído como o acto de descascar uma cebola, expondo camada após camada e revelando, de cada vez, um novo e inesperado caminho para a história. A mestria de Mamet está na maneira como cria os "twists" com a maior das verosimilhanças, bem como no modo como brinca com as emoções dos espectadores com cada nova reviravolta. Joga sabiamente com algumas convenções do thriller e do filme de acção, não caindo em nenhuma das armadilhas que uma tal "mistura" poderia originar.


E, depois, há os diálogos. No seu livro "On Directing Film", Mamet expõe uma teoria acerca da narrativa cinematográfica que tem deixado mais do que uma pessoa ligeiramente baralhada: "Basicamente, o filme perfeito não tem diálogos. Deve-se sempre ter como objectivo fazer-se um filme mudo"* Estas afirmações podem parecer irónicas para quem já tenha ouvido as frases sonantes ditas pelas personagens de obras como "State & Main". No entanto, nesse mesmo parágrafo, Mamet também diz que "...se estamos a contar a história com as imagens, então os diálogos são a cobertura por cima do gelado". Assim o é em "Spartan". Porque se realmente os diálogos desempenham um papel crucial na composição das personagens e no avanço da narrativa, também é verdade que a sua eficácia é possível graças a uma découpage minuciosamente pensada, a uma direcção de fotografia impecável, a uma montagem precisa e a uma música de fundo que estabelece perfeitamente o ambiente.


Há também que referir o soberbo trabalho dos actores. Val Kilmer tem aqui aquele que é muito provavelmente o melhor dos papéis que desempenhou nos últimos anos, sendo que Derek Luke, Tia Texada e Kristen Bell têm todos composições acima da média. Lamenta-se, simplesmente, que a personagem de William H. Macy (bem mais importante do que parece) não seja mais explorada e, por consequência, não tenha mais tempo no ecrã. A interpretação de Macy é correcta a todos os níveis, e chega mesmo a proporcionar-nos alguns momentos excelentes, mas como contraponto à personagem de Scott, acaba por não ter o desenvolvimento que se desejaria.

Não que isso prejudique tremendamente o resto do filme. Continua a ser um dos títulos mais interessantes actualmente em sala e um thriller notável.

Spartan - O Rapto (Spartan)
Thriller, EUA, 2004

Argumento e realização: David Mamet
Elenco: Val Kilmer, Tia Texada, Derek Luke, Kristen Bell, William H. Macy.
Produção: David Bergstein & Moshe Diamant
Dir. de fotografia: Juan Ruiz Anchía
Música: Mark Isham
Montagem: Barbara Tulliver
Som: Felipe Borrero


* A tradução livre é da minha autoria, visto que o livro "On Directing Film" nunca foi publicado em Portugal. Para quem a quiser arranjar (vale bem a pena), a edição em língua inglesa da Penguin Books ainda está disponível no site da Amazon britânica.

Só umas poucas palavras sobre "Wanda"

Confesso que não consigo partilhar o entusiasmo que Isabelle Huppert e muita da crítica têm tido por "Wanda", o único filme que Barbara Loden (mulher de Elia Kazan) realizou e protagonizou em 1971 e que só recentemente estreou entre nós. Tem sido dito por aí que se trata de "um dos melhores filmes norte-americanos dos anos 70", ou até mesmo de uma "obra-prima negligenciada". A primeira observação parece-me completamente exagerada, sobretudo tendo em conta de que se trata de uma década que nos brindou com tantos filmes memóraveis que fazer aqui uma lista seria uma tarefa (quase) interminável! Com a segunda também me parece difícil de concordar: embora "Wanda" tenha uma ideia de partida interessante e algumas sequências bastante bem pensadas e dirigidas (como é o caso da cena em que Wanda pede emprego numa fábrica de tecelagem, bem como a do assalto ao banco), o filme não deixa de passar uma sensação de "à-deriva" que nos deixa emocionalmente desligados dos dramas e tragédias da personagem principal. A fragilidade de algumas interpretações (sobretudo de alguns actores secundários) e o distanciamento e quase-indiferença que Loden cria entre Wanda e tudo que lhe rodeia fazem com que, quando o filme chega ao fim, não nos sintamos realmente muito afectados com aquilo que vimos. Faz, por vezes, lembrar vagamente algumas obras de John Cassavetes, mas falta qualquer coisa...

No entanto, a memória da interpretação de Loden enquanto irmã outsider de Warren Beatty no maravilhoso "Esplendor na Relva" continua a ser marcante...

sábado, agosto 21, 2004

"O Regresso" do cinema Russo


A vida de Andrei (Vladimir Garine) e Ivan (Ivan Dobronravov), dois irmãos em fase de início de adolescência, é completamente abalada quando o seu pai (Konstantin Lavronenko) aparece em casa após uma ausência inexplicada de 12 anos. Tudo o que sabem acerca dele é que é (ou foi) piloto, e a única memória que retêm deste estranho homem é uma fotografia tirada há mais de dez anos. A aparente frieza que o pai mantém para com os seus filhos não parece oferecer grandes esclarecimentos. No entanto, este regresso não será um mero retorno a casa: Andrei e Ivan partem com o seu pai numa viagem com o suposto objectivo de recuperarem o tempo perdido. No entanto, as "férias" que terão com o pai serão muito diferentes do que alguma vez poderiam imaginar...


"O Regresso" chegou a Portugal transportado numa verdadeira avalanche de elogios onde não faltavam citações a praticamente todos os grandes cineastas russos do passado (sobretudo Tarkovski e Kulechov), e carregando consigo o prestígio do Leão de Ouro do Festival de Veneza do ano passado. Ainda assim, as poucas imagens que se vêem por aí poderiam sugerir que se tratava de um filme essencialmente contemplativo, de grande beleza visual mas de um possível vazio narrativo. Felizmente, está muito longe de ser o caso. "O Regresso" é uma das estreias mais estimulantes deste Verão e, para variar, dá mesmo para acreditar na hype de que se trata de um dos melhores filmes Russos das últimas décadas!

Se é verdade que a qualidade do notável trabalho do director de fotografia Mikhail Krichman salta à vista desde os primeiros planos do filme, não é (apesar de tudo) nela que encontraremos os maiores prazeres. A primeira sequência, onde um grupo de rapazes testa a sua "virilidade" numa competição privada de mergulho e onde o pequeno Ivan é gozado por não querer saltar para a água gelada, imediatamente estabelece o tom e lança a temática que o súbito retorno do pai só vem confirmar e aprofundar: trata-se de um filme sobre o crescimento no masculino e, também, sobre um conflito entre duas gerações de homens muito diferentes. Não é por acaso que as únicas mulheres neste filme, a mãe (figura essencialmente protectora, como podemos ver no início) e a avó (completamente apagada em segundo plano) estejam ausentes no resto da história, e nem a empregada do restaurante tem qualquer função que não a de dar a oportunidade ao Pai de ensinar algumas boas maneiras a Andrei.


O argumento, tal como a figura do Pai, assenta em poucos diálogos (a maioria e os mais extensos pertencem aos dois irmãos), optando por expressar as suas ideias através das pequenas insinuações do pouco que é dito, do que não é dito e dos momentos de silêncio. Recusa-se a fazer qualquer separação maniqueísta das personagens, evitando a tentação de tornar o pai no "vilão" da história, conseguindo assim fugir a quaisquer estereótipos e conferir uma enorme profundidade e um certo mistério às três personagens masculinas. Isto porque em vez de nos brindar com as respostas a todas as perguntas, prefere dar-nos pistas e deixar outras questões no ar. É uma aposta díficil, mas definitivamente ganha.

Há espaço para alguma crítica social (nomeadamente no modo como é sugerida a pobreza de diversas partes da sociedade russa), mas é na composição de personagens que se marcam alguns dos maiores pontos. O Pai é um homem no sentido mais "tradicional" do termo: másculo, reservado, autoritário, seguríssimo de si, absolutamente víril e com uma enorme dificuldade em expressar qualquer tipo de carinho. A viagem para a qual parte com os seus filhos será uma espécie de ritual de iniciação onde procurará, com métodos muito pouco usuais, transmitir os seus valores e fazer deles uns "Homens". No entanto, se Andrei ainda se identifica minimamente com o seu pai, esta sua atitude vai suscitar um confronto com Ivan que destabilizará tudo e que constituirá o principal ponto de interesse da história. Para isso muito contribuem as excelentes interpretações de todo o elenco, estando os três actores principais completamente à altura uns dos outros. É, portanto, de lamentar ainda mais a morte precoce de Vladimir Garine (morreu afogado no lago onde decorreu uma parte das filmagens, pouco depois destas terminarem), que certamente ainda teria muito a dar à 7ª arte. Resta-nos a esperança de Ivan Dobronravov e a já confirmada capacidade de Konstantin Lavronenko. O que não é pouco.


Há que sublinhar, muito especialmente, a estreia na realização de Andreï Zviaguintsev, um antigo actor que consegue revelar uma maturidade absolutamente impressionante para uma primeira obra. Num filme em que podia muito facilmente cair na tentação de se limitar a justapor uma quantidade de imagens bonitas na vaga esperança de fazer "poesia", o realizador consegue contar uma história sobre o crescimento com uma enorme segurança e, ao mesmo tempo, realmente ser poético. É, aliás, na découpage e na montagem que Zviaguintsev revela uma enorme noção de ritmo, um conhecimento muito preciso de quais planos se devem prolongar e quais se devem cortar mais cedo. O resultado é uma dilatação do tempo extraordinariamente conseguida, capaz de nos fazer passar as emoções das personagens sem alguma vez despertar o tédio e a monotonia.


"O Regresso" é um filme onde o frio parece transpor o grande ecrã e invadir-nos e, no entanto, consegue também ser de um enorme calor humano, chegando a proporcionar-nos vários momentos de um humor discreto que nos fazem sentir que estamos perante seres humanos e não meras personagens de uma ficção encenada. E não esqueçamos a música de Andrei Dergatchev, subtil e poderosa ao mesmo tempo. A enigmática sequência final é o derradeiro murro no estômago, deixando-nos a tarefa de interpretar as (belíssimas) imagens que desfilam diante dos nossos olhos muito depois dos créditos acabarem de rolar. Exercício a que nos dedicamos com prazer, tal é o fascínio que o filme deixa em quem o vê.

O Regresso (Vozvrashcheniye)
Drama, Rússia, 2003.

Realização: Andreï Zviaguintsev
Argumento: Vladimir Moiseyenko & Aleksandr Novototsky
Elenco: Ivan Dobronravov, Konstantin Lavronenko, Vladimir Garine, Natalia Vdovina, Galina Petrova
Produção: Dmitri Lesnevsky
Produção executiva: Yelena Kovalyova
Dir. de fotografia: Mikhail Krichman
Música: Andrei Dergatchev
Montagem: Vladimir Mogilevsky
Som: Andrei Khudyakov
Tradução: Sara David Lopes (a partir da versão inglesa)
Site oficial português: http://www.atalantafilmes.pt/2004/oregresso/

sábado, agosto 14, 2004

Dossier: A Questão Michael Moore - Operação Toucinho Canadiano (Parte IV de VI)


Depois da sua incursão no documentário cinematográfico com “Roger & Eu” e no mundo da TV com a primeira temporada de “TV Nation”, Michael Moore decidiu largar (temporariamente) a sua veia documentarista e experimentar a ficção com uma sátira política completamente nonsense – chamou-se por cá Operação Toucinho Canadiano. E não resultou tão bem quanto isso nem na bilheteira nem na página da crítica de cinema.


O plot é simples: o presidente dos Estados Unidos da América (Alan Alda) depara-se com uma situação de impopularidade tremenda. As eleições não estão muito distantes e se algo não for feito rapidamente, o partido arrisca-se a uma estrondosa derrota. O que fazer então para distrair a atenção do público Americano e garantir uma subida de popularidade? Declarar uma guerra fria ao Canadá (isto porque os Russos estão numa de investir nas infra-estruturas e na educação e não têm nem tempo nem dinheiro para mais uma guerra fria...)! O problema é que o que começa como sendo simplesmente uma “guerra de papel” acaba por descambar numa guerra a sério quando o xerife Bud Boomer (o falecido John Candy) e a sua amada Honey decidem fazer justiça pelas suas próprias mãos e realizarem a sua própria invasão ao Canadá!

Se em “Bowling for Columbine” Michael Moore viria a abordar os temas da cultura do medo, da influência das indústrias de armamento e o contraste entre as realidades sociais norte-americanas e canadianas, bem que se pode dizer que já neste filme se assistia a um “ensaio” de tais temáticas. O realizador brinca com os estereotipos que existem sobre americanos e canadianos, usando-os para efeito cómico - o povo norte-americano (mas, sobretudo, o poder político e militar norte-americano) é retratado como sendo completamente ignorante da realidade do seu país vizinho, enquanto que o Canadá é apresentado como um país de pessoas de uma boa vontade inacreditável, incapazes de ficarem violentos mesmo perante os maiores insultos... a não ser que estes sejam dirigidos à sua cerveja ou equipa de hóquei nacional!


O que falha no filme é o seu (assumido) exagero burlesco. Embora Moore queira criar uma farsa política na onda de “Dr. Estranhoamor” de Stanley Kubrick, muitas das suas qualidades acabam por se perder nalguns gags mais óbvios e básicos. A ideia da “criação de uma guerra a todo o custo” para reconquistar as eleições é original, mas seria melhor explorada em filmes como “Manobras na Casa Branca” de Barry Levinson; enquanto que a invasão do Canadá seria retomada em moldes ainda mais ácidos no delicioso "South Park - O Filme" de Trey Parker e Matt Stone (que, por acaso, até são amigos de Moore). No entanto, há que realçar alguns diálogos particularmente inteligentes que por vezes vão surgindo, como é o caso daquele semi-profético em que o presidente dos EUA despreza completamente a possibilidade de existirem ameaças terroristas!

Não é um filme excepcional, e é a confirmação de que Moore é muito mais um documentarista do que um ficcionista. Mas não deixa de ser um filme curioso, com alguns pontos fortes que tornam o seu visionamento bastante agradável.


Já agora, mantenham os olhos bem abertos e estejam atentos durante todo o filme: entre outros, há para descobrir cameos de James Belushi (como um reporter de TV para a “NBS”), Dan Aykroyd (num pequeno mas hilariante papel como polícia canadiano) e do próprio Michael Moore como um manifestante que idolatra Bud Boomer!

Operação Toucinho Canadiano (Canadian Bacon)
Comédia, 1995, EUA.

Argumento e realização: Michael Moore
Elenco: John Candy, Alan Alda, Rhea Pearlman, Kevin Pollack, Rip Torn, Kevin J. Connor,
Produção: David Brown, Ron Rotholz, Michael Moore
Dir. de fotografia: Haskell Wexler
Música: Elmer Bernstein & Peter Bernstein
Montagem: Wendy Stanzler, Michael Berenbaum

Disponibilidade:

O filme já passou no Canal Hollywood algumas vezes, e o IMDB atribui-lhe um certificado de “para maiores de 12 anos” para o território Português, mas desconheço qualquer edição nacional em DVD do mesmo.


Quem procurar edições estrangeiras também não terá muito por onde escolher: as edições americanas, inglesas e francesas são praticamente iguais (só a inglesa é que dispensa umas legendas em espanhol e francês) e, de conteúdos adicionais, só têm mesmo a trailer...

quinta-feira, agosto 12, 2004

Dossier: A Questão Michael Moore - Roger & Eu (parte III de VI)


Em 1987, Roger Smith, chairman da General Motors, decidiu, em pleno apogeu económico da empresa construtora de automóveis, fechar a fábrica localizada em Flint, no Michigan. Desse encerramento resultou o despedimento de mais de 40.000 empregados e o início do caos social na pequena cidade. Michael Moore, habitante de Flint que na altura se encontrava desempregado, decidiu não ficar passivo perante esta situação e, após juntar algum dinheiro ao organizar jogos comunitários de bingo na sua casa (!), pegou numa pequena equipa de filmagens que conhecera dos seus tempos de jornalista e partiu numa missão muito peculiar: fazer um documentário onde se mostrasse as consequências desastrosas do encerramento injustificado da fábrica e, ao mesmo tempo, contactar directamente com Roger Smith e convidá-lo a visitar Flint para lhe mostrar o impacto da sua decisão na vida dos habitantes da sua terra natal. Nunca conseguiu falar com Roger. Mas fez um dos documentários mais marcantes dos anos 80.

Quando estreou em 1989, “Roger & Eu” causou um burburinho considerável nos EUA. Pela primeira vez em muito tempo, a “América dos pequeninos” via no grande ecrã um dos seus a fazer frente ao patrão de uma grande corporação, munido unicamente de uma câmara e um sentido de humor ácido, e a conseguir dar uma luta impressionante! Embora o próprio poster não deixe quaisquer dúvidas de que Moore nunca irá encontrar-se com Roger, o que cativa o espectador não é (só) as tentativas frustradas de Moore de chegar ao último andar da sede da GM para falar com o poderoso chefão – é que entre esses momentos, Moore faz um fresco da situação na sua cidade natal que é das mais sinceras e perturbadoras viagens à América do interior jamais registadas em película.

Somos confrontados com o contraste da despreocupação dos ricos (que organizam festas onde alguns desempregados fazem de estátuas humanas, não fazendo sequer ideia de que Flint está a passar por uma crise social) e o brutal despejo de várias famílias das suas casas (uma das quais em pleno dia de Natal...) pela parte de um Xerife-adjunto que diz honestamente que só está a fazer o seu trabalho. Há também a senhora que combate a pobreza vendendo coelhinhos como “animais de estimação ou como comida”, não tendo qualquer dificuldade em abater e esfolar os ditos animais em frente à câmara naquela que foi (ridiculamente) a cena mais contestada de todo o filme. Pelo caminho, também fazemos uma viagem ao passado de Flint, que em tempos foi uma dos maiores representantes do “Sonho Americano” e, na altura em que o documentário foi rodado, foi eleita pela “Fortune Magazine” como a mais pobre cidade dos EUA.

O que mais toca é a evidente identificação que Moore tem com as pessoas da sua cidade natal. “Roger & Eu” pode ter inúmeros momentos que nos fazem rir, mas é sempre um riso amargo. Trata-se de um documentário pessoalíssimo (não é por acaso que o filme, até no título, está narrado na primeira pessoa do singular) sobre uma situação extremamente dolorosa para o seu autor, e o humor apresentado é sobretudo irónico e reflexivo. Não sabemos por vezes se havemos de rir com o ridículo que é assistir à inauguração em Flint de uma prisão onde as pessoas são convidadas “a passar uma noite dentro” para comemorar a ocasião ou a ficar imensamente furiosos com o facto das coisas terem chegado a um ponto onde situações como esta não pertencem ao campo do surreal!


No fim do dia, Moore pode não ter conseguido fazer com que Roger Smith assistisse pessoalmente ao estado das coisas em Flint, nem ter feito com que os desempregados da sua cidade recuperassem os seus empregos. Mas conseguiu dar-lhes voz e fazer com que os espectadores do resto do mundo conhecessem e reflectissem sobre a sua situação. E essa é a maior vitória do filme.

Roger e Eu (Roger and Me)
Documentário, 1989, EUA.

Argumento, produção e realização: Michael Moore
Co-Produtora: Kathleen Glynn
Operador de Câmara: Christopher Beaver, John Prusak, Kevin Rafferty e Bruce Schermer.
Montagem: Wendey Stanzler & Jennifer Beman
Cor, 87 minutos.

Disponibilidade:

Tragicamente, a primeira obra de Moore permanece inédita em solo português, isto tanto em DVD como em VHS, embora já tenha, inclusive, recebido honras de passar na televisão há vários anos (na SIC, se a memória não me falha...), muito antes de Michael Moore ser MICHAEL MOORE.



No entanto, não é difícil encontrar nas FNACs nacionais o DVD francês da Warner Brothers (“Roger et Moi”) que, como mais valia para quem não for grande conhecedor da língua de Molière, vem abastecido de legendas em Inglês, Alemão, Sueco, Norueguês, Dinamarquês, Finlandês e... obviamente, Francês! Nada de legendas em português, mas sempre é melhor que nada! Ah, e também há no disco umas dobragens em Francês e Alemão, mas todos sabemos que a versão original é aquela que vamos querer ouvir!

É uma edição praticamente desprovida de extras, mas felizmente temos, para nos consolar, a trailer original para as salas de cinema e (mais relevantemente) um comentário de áudio do próprio Michael Moore que deverá ser do interesse de todos que queiram saber mais sobre a concepção do filme.

Existem também as versões norte-americanas e inglesas deste disco, sendo a primeira igual à francesa em termos de conteúdos (mas com menos legendas por onde escolher) e a segunda bastante inferior, já que contém o filme e... nada mais!

É só uma pena que em nenhuma destas edições se tenha incluído também a curta-metragem documental “Pets or Meat: The Return to Flint”, um especial de 24 minutos feito para a TV, documentando o que acontecera aos habitantes de Flint três anos depois da conclusão de “Roger e Eu”.

A Emissão prossegue dentro de momentos...

A gerência pede desculpas pela demora da actualização do dossier "Michael Moore", mas problemas técnicos envolvendo discos rígidos, jumpers, fontes de alimentação e outros etc. do mundo informático não permitiram a inclusão diária de posts que se desejava. Se tudo correr bem, a partir de hoje os posts devem retomar o ritmo inicialmente previsto.

O post referente à primeira longa-metragem de Michael Moore, "Roger & Eu", será publicado dentro de breves instantes...

segunda-feira, agosto 09, 2004

Dossier: A Questão Michael Moore - Fahrenheit 9/11 (parte II de VI)

"Fahrenheit 9/11 - A Temperatura a que Arde a Liberdade"


“Fahrenheit 9/11” começa com o mesmo ponto de partida do livro “Stupid White Men”: regressamos a 2000, no dia das eleições para a Presidência dos EUA. Al Gore é anunciado como sendo presidente mas, pouco tempo depois, é a FOX quem revela que a contagem dos votos, na realidade, dá a vantagem a Bush. Os restantes média apressam-se a dar-lhe razão. Gore já não é presidente, e Bush entra na Casa Branca à chuva de ovos e tomates de inúmeros manifestantes que contestam a sua eleição. Terá sido tudo um sonho? Um pesadelo? Ou simplesmente a realidade?

O mais recente filme de Michael Moore assume-se desde logo como sendo “Anti-Bush”. Quem vai vê-lo não deve esperar encontrar aqui uma visão jornalistica do tema, mas sim uma tese sobre o fracasso berrante de uma administração que teve como lema o “conservadorismo compreensivo”. É talvez o filme mais criticado de Moore, mesmo entre os seus habituais admiradores. É também aquele em que o realizador aparece menos no ecrã, sendo que a maior parte daquilo que vemos são imagens de arquivo montadas sobre uma ordem específica e “narradas” pela voz de Moore.


Manipulação? Mas o que é o cinema senão a arte da manipulação dos sons e das imagens? Basta colocar um plano ao lado de outro para existir manipulação, por muito pequena que seja. Quanto à alegada manipulação de factos, é o próprio Moore que desafia quem encontrar incoerências para as denunciar publicamente de modo a ganhar uma recompensa choruda. De resto, os elementos factuais ditos “falsos” por muita gente têm sido prontamente desmentidos no site “The Facts in 9/11”.

É filme para Americano ver? Provavelmente. É, afinal, na população norte-americana que Moore espera que o seu documentário faça o maior efeito. Propaganda? O Grande Dicionário da Língua Portuguesa do Círculo de Leitores define «propaganda» como sendo “Acção de propagar ideias, princípios, conhecimentos, teorias, divulgação, evangelização Associação encarregada de vulgarizar certas doutrinas”. Estranhamente, não vejo no filme a apologia de uma ideologia específica, nem a defesa de um partido em particular (Moore também nunca foi generoso com os democratas – vide “The Big One”) nem sequer uma divisão maniqueista do mundo em “bons” e “maus” – vejo, isso sim, uma crítica dura e impiedosa a uma administação e ao seu presidente. Crítica essa com que podemos concordar ou discordar (o filme NUNCA passa a ideia de que quem não concorda com as teorias expressas nele é estúpido!). De resto, que não haja dúvidas: o filme respeita todas as regras do documentário.*


Mas pondo estas questões de propaganda de parte, podiamos perguntar-nos se o filme tem ou não algum valor artistico, independetemente da mensagem que quer transmitir. Parece-me que, neste ponto, é que muita da crítica existente tem sido particularmente injusta, pois “Fahrenheit 9/11” consegue mesmo ser um belíssimo documenário. Desde a soberba sequência de créditos (onde vemos os membros principais da administração Bush a serem maquilhados como se fossem actores a prepararem-se para o início da peça), passando pela parte em que Moore tenta (sem sucesso) convencer membros do congresso a alistarem os seus filhos para a guerra no Iraque até ao plano final em que Bush se vê incapaz de dizer o velho ditado “Fool me once, shame on you; fool me twice, shame on me” que o estilo é provocador, extremamente crítico mas sempre lúcido e coerente. E francamente muito bem construído.

O filme consegue mesmo momentos belíssimos de montagem – quem o acusa de oportunista é porque deveria estar distraído durante a cena em que se “mostra” o embate nas Torres Gémeas dos aviões unicamente através do som e, posteriormente, de imagens de várias pessoas e olhar para off, onde a desgraça ocorreu. Cineastas menos habilidosos certamente não teriam resisitido à tentação de ir buscar as mais que revistas imagens dos choques – Moore escolhe a decência de nos poupar de tais obscenidades. Ninguém parece ter reparado nisso.


Há alturas onde Moore quase que pisa o risco – quando a mãe de um soldado morto no Iraque lê a última carta enviada pelo seu filho, perguntamo-nos por vezes se não estamos a entrar no campo do voyeurismo. A posteriori, parece-me que a escolha de Moore de colocar essa cena na íntegra faz todo o sentido, já que era necessário mostrar as consequências da guerra no Iraque, por muito dolorosas que fossem. Mas não esqueçamos outros momentos memoráveis/perturbantes do filme - o impasse de Bush ao ser informado de que o país está a ser atacado enquanto lia um livro infantil a um grupo de crianças (a voz-off de Moore, ao contrário do que já foi escrito por aí, não nos diz o que o presidente estava a pensar, apenas faz suposições baseadas nas suas expressões faciais...); a realidade desoladora da vida dos jovens "voluntários" que participaram na guerra do Iraque, bem como os curiosos métodos de recrutamento usados pelas instituições militares dos EUA para os convencer a alistar-se; o choque que é saber que a maioria dos congressistas que aprovaram o "Patriot Act" nem sequer o tinham lido; etc. Nestas sequências, como é típico na obra de Moore, o riso (irónico) vai de mão dada com a reflexão.

Mereceu a Palma d’Ouro? Na minha sincera opinião, sim, mereceu. Controvérsia... Que controvérsia?

Fahrenheit 9/11
Documentário, 2004, EUA.

Argumento e realização: Michael Moore
Produção: Michael Moore, Kathleen Glynn & Jim Czarnecki.
Produtores executivos: Harvey Weinstein & Bob Weinstein.
Dir. de Fotografia: Mike Desjarlais; Imagens adicionais: Kirsten Johnson & William Rexer.
Música: Jeff Gibs & Bob Golden.
Montagem:Kurt Engfehr, Todd Woody Richman & Chris Seward.

Disponibilidade:

O filme está actualmente em exibição nos cinemas portugueses.

*Já que falamos de propaganda, lembremos um pequeno episódio do passado. Howard Hawks filmou, logo a seguir ao ataque de Pearl Harbour, um filme de ficção chamado “Air Force - Águias Americanas”. Nele, os japoneses são retratados como sendo monstros - quando os seus aviões são abatidos por caças americanos o ambiente é de festa, e há até uma tentativa de comic-relief personificada num cachorrinho de nome “Tripoli” que, muito “sabiamente”, só ladra quando lhe dizem nomes japoneses como “Moto”. É propaganda no seu estado mais puro – há bons (os americanos) e maus (os japoneses), os maus são monstros imperdoáveis e desuhamanos, os bons são modelos de virtudes (e a única personagem que começa por não o ser acaba por se redimir lá para o fim) e, claro, o bem ganha sempre. Mesmo que essa vitória do bem consista em bombardear Tóquio... No entanto, é difícil encontrar hoje quem ouse dizer mal do filme e de chamar de faccioso a Howard Hawks. Afinal, o homem é (muito justamente) o génio por detrás de obras-primas como “Rio Bravo” ou “Os Homens Preferem as Loiras”. Pelo contrário, elogia-se a (inegável) qualidade técnica do filme, que é formidável sobretudo tendo em conta o ano em que foi produzido e a rapidez em que foi feito. E além disso, ninguém esquece que foram as cenas de combate de caças deste filme que influenciaram George Lucas na concepção dos brilhantes combates especiais entre Tie-Fighters e StormTroopers no seu mítico “A Guerra das Estrelas”. Do lado de propaganda já ninguém parece querer saber. O nome de Hawks é superior a isso tudo.

Dossier: A Questão Michael Moore (Parte I de VI)


O CineArte inaugura a sua secção de dossiers dedicados à obra de cineastas que, por uma razão ou por outra(s), merecem um destaque acrescido. Tentar-se-á, com estes dossiers, dar a conhecer a (quase) totalidade da obra de um determinado autor, dando a hipótese ao leitor de partir dos textos para um ou mais filmes. E começamos com uma escolha polémica – Michael Moore, o homem que tem como missão actual assegurar que George W. Bush não volte a ser eleito presidente dos Estados Unidos da América neste próximo Novembro.

Optou-se, neste dossier, por abordar unicamente a obra para cinema do documentarista oriundo de Flint, já que seria impossível (em termos temporais e financeiros...) escrever com a mesma consideração sobre os seus livros e sobre os seus trabalhos para a televisão.

Muito tem sido escrito sobre os filmes. Infelizmente, muito do que de negativo se afirmou sobre o seu último filme, “Fahrenheit 9/11”, tem nascido, um pouco à semelhança do que já acontecera com as suas obras anteriores, não só de diversas alegações de “manipulação dos factos” como, e isto muito mais gravemente, de um profundo desconhecimento do que é um documentário cinematográfico. Daí que, antes de continuar com este texto, convenha expor uma definição:

O documentário é um género que pressupõe uma visão subjectiva da realidade pela parte do seu autor, um ponto de vista nítido e sincero sobre uma determinada situação da actualidade. Não é uma reportagem e nem sequer se rege pelas leis do jornalismo (a primeira das quais, a objectividade no tratamento da informação - que mesmo no jornalismo televisivo de hoje em dia é mais que questionável...). É uma obra de arte, tão subjectiva como a mais honesta das ficções ou o mais rabiscado dos quadros.


Mas não vão por estas palavras. Michael Rabiger, autor do livro “Directing the Documentary” (1992, Focal Press) que é considerado uma leitura de referência nas escolas de cinema que leccionam o género do documentário, diz na sua obra lapidar que um filme documentário deve ser “ou um ensaio controlado e premeditado ou algo lírico e impressionista. Pode articular o seu significado principalmente através de palavras, imagens ou comportamento humano (...) O filme documentário reflecte um fascínio e um profundo respeito pela actualidade. É o exacto oposto do ‘escape entertainment’, estando comprometido com a riqueza e ambiguidade da vida tal como ela é”.

Nos seus documentários, Moore assume frontalmente a sua ideologia de esquerda. Embora diga que os seus filmes estão construídos de modo a entreter o espectador comum que pagou 10 dólares pelo bilhete de entrada, o certo é que estes oferecem muito mais do que umas quantas piadas dispersas por noventa ou cento e vinte minutos. Moore é um retratista da população da chamada “small-town America”, aquela que não tem qualquer expressão nos média ou nas artes norte-americanas, que só surge nos noticiários quando é vítima dos crimes de mão armada. As situações que aborda, como o crescente desemprego na classe média e as fraudes corporativas que passam incólumes, mostram uma nação de contrastes, que gosta de passar a imagem de que é o país mais rico do mundo e a “terra das oportunidades” mesmo que essa riqueza esteja longe de ser distribuída e que as oportunidades sejam só para alguns. São reflexões sobre “o Sonho Americano” feitas por alguém que soube ver nele o mais podre e, ironicamente, ser dos poucos privilegiados a vivê-lo.

Goste-se ou não, o certo é que Moore conseguiu uma proeza inegável, que foi atrair milhões de espectadores em todo o mundo para um género cinematográfico (o documentário) que geralmente tem grandes dificuldades em impor-se comercialmente perante as obras de ficção, isto quando consegue sequer chegar às salas de cinema. Os seus documentários geraram mais discussão e reflexão sobre a política interna e externa dos EUA do que muitos livros ou “reportagens objectivas” feitas para a imprensa escrita ou televisiva. E, no fim do dia, não será essa uma das mais nobres funções do cinema (e do cinema documental em particular), a de nos fazer discutir e reflectir sobre a nossa actualidade?


E goste-se ou não, é mais que certo que Michael Moore não ficará por aqui. A comprová-lo está o seu já anunciado próximo projecto de documentário “Sicko”, um filme que aborda o sistema de saúde norte-americano. Conhecendo a obra anterior do realizador, não é de esperar propriamente os maiores elogios pela parte do documentarista de Flint.

sexta-feira, agosto 06, 2004

Memorial: "Hiroshima, meu amor" de Alain Resnais

Faz hoje 59 anos que a humanidade assistiu a um dos actos mais hediondos da sua história. Um avião tristemente baptizado de "Enola Gay" sobrevoou a cidade de Hiroshima, o seu piloto alegremente largou uma das mais perversas invenções da ciência e, em poucos minutos, fez história no pior de todos os sentidos. Como a memória dos homens, por vezes, é curta, convém relembrar o acontecimento e um dos filmes que, de forma indirecta, melhor espelhou os "anos a seguir" à tragédia atrás descrita: o magnífico "Hiroshima, meu amor" de Alain Resnais.

Doze anos depois da tragédia, um homem japonês e uma mulher francesa têm um affaire na primeira cidade devastada pela bomba atómica. Ela é actriz, está de passagem pelo Japão para acabar de filmar um filme sobre a paz e regressar o mais rapidamente possível para Paris. Ele é um salary-man casado que sabe falar francês. Ambos sabem que a sua relação está condenada. No entanto, algo os une de uma maneira quase irracional. Ao passear por Hiroshima, ao abraçar-se ao seu amante nipónico, Ela irá fazer uma viagem pelas suas memórias, encontrando em Hiroshima e no homem de negócios nipónico ligações não tão estranhas com o seu próprio passado...

Com argumento da escritora Marguerite Duras ("Moderato Cantabile", "O Amante"), Alain Resnais cria um filme intimista e experimental que consegue ser das obras mais fascinantes tanto da argumentista como do realizador. Misturando o registo do documentário (o segmento inicial, com as várias fotografias de Hiroshima, dos seus destroços, das suas vítimas) com uma ficção soberbamente dirigida. É um filme "difícil" mas nunca vazio. As interpretações de Emmanuelle Riva e Eiji Okada são fabulosas, dando vida aos diálogos dificílimos de "ler" (pelo seu teor reflexivo e quase "teatral") de Duras. Mas atente-se também à soberba música de Georges Delerue e Giovanni Fusco, à magnifica direcção de fotografia de Michio Takahashi e Sacha Vierny e, como não poderia deixar de ser num filme de Resnais, ao trabalho de montagem engendrado pelo trio Jasmine Chasney, Henri Colpi e Anne Sarraute (e certamente também ao próprio Resnais). É uma verdadeira lição de cinema que nada tem a ver com o pretensioso "revisitar" do tema que Nobuhiro Suwa fez em 2001 no medíocre "H Story".

Numa altura em que convém manter as memórias do acontecimento bem vivas, nada como ver um filme que, revisitando a "cena do crime", aborda o modo como as nossas experiências pessoais moldam as nossas lembranças dos acontecimentos do passado.

Ele - Tu não viste nada em Hiroshima. (...)
Ela - Vi tudo. Tudo.
(...)
Ela -... do décimo quinto dia também. Hiroshima cobriu-se de flores. Havia por toda a parte centáureas e gladíolos e trepadeiras e lírios amarelos que renasciam das cinzas com um com um extraordinário vigor, até então desconhecido nas flores. Nada inventei.
Ele - Inventaste tudo.
Ela - Nada.


Hiroshima, meu Amor (Hiroshima, mon Amour)
Drama, 1959, França/Japão
Realizador: Alain Resnais
Argumento: Marguerite Duras
Elenco: Emmanuelle Riva, Eiji Okada, Stella Dassas, Pierre Barbaud, Bernard Fresson
Produção: Anatole Dauman e Samy Halfon
Dir. de Fotografia: Michio Takahashi e Sacha Vierny
Música: Georges Delerue e Giovanni Fusco
Montagem: Jasmine Chasney, Henri Colpi e Anne Sarraute

Disponibilidade:

Existe uma soberba edição em DVD da Criterion, mas nenhuma edição nacional. Pelo contrário, o argumento de Marguerite Duras está publicado em Português pela Quetzal Editores e recomenda-se.

segunda-feira, agosto 02, 2004

Notícias: "O Lugar do Morto" é lançado em DVD


Mais de três anos (!!!) passados após ter recebido subsídio pela parte do ICAM para ser transcrito para o formato digital, eis que finalmente chega ao mercado português o DVD da célebre longa metragem "O Lugar do Morto" de António Pedro Vasconcelos, editado pela Costa do Castelo.

A demora da edição ter-se-á devido a vários factores, entre os quais a dificuldade de obtenção de suplementos que enriquecessem a edição (na época da produção do filmes, até mesmo os "making-of" não eram comuns no cinema português...).

"O Lugar do Morto" é um dos mais míticos (e mais subestimados) filmes portugueses produzidos nos anos 80. Quando foi lançado nas salas, em 1984, causou sensação entre o público tornando-se o maior êxito de bilheteira obtido por um filme português até então (cerca de 278 mil espectadores, recorde só batido 13 anos mais tarde por "Tentação" de Joaquim Leitão). A razão deste êxito deveu-se não só às qualidades do filme, como também ao simples facto de se aventurar com uma inegável segurança por dois territórios pouco explorados no cinema português: o do policial e o do filme negro. É o próprio realizador, aliás, que diz que o filme é muito influenciado por Otto Preminger.

Como já foi aludido, o disco não é propriamente abundante em extras. Mas destaca-se a excelente qualidade da imagem (fabulosa para um filme de 1984) e um muito interessante audio-comment do realizador, que já nos brindara com uma boa lição de cinema na faixa de comentário de audio do DVD de "Jaime".

Com argumento de Carlos Saboga ("Aqui D'el Rei", "Jaime", "O Milagre Segundo Salomé") e António Pedro Vasconcelos, direcção de fotografia de João Rocha ("Perdido por Cem", "Oxalá" e "Paraíso Perdido" de Alberto Seixas Santos), montagem de Manuela Viegas ("Glória") e música de Alain Jomy ("Aqui D'el Rei", "Jaime"), bem como um elenco que conta com as presenças de Pedro Oliveira, Ana Zanatti, Ruy Furtado, Teresa Madruga, Lídia Franco, Natalina José, Carlos Coelho e Manuela de Freitas, "O Lugar do Morto" é um dos títulos essenciais da nossa cinematografia. O preço do disco é de €24.50. E vale a pena...
P.S. - Já agora, para quando uma edição em DVD de "A Balada da Praia dos Cães" de José Fonseca e Costa? É só uma ideia...

domingo, agosto 01, 2004

Museu temporariamente fechado para férias


Chega Agosto e é sempre a mesma coisa na capital. As pessoas que pouparam algum dinheiro fogem para fora (Algarve ou República Dominicana, se o objectivo é praia; Paris ou Nova-Iorque, quando se procura outra coisa...) e quem permanece por Lisboa fica a trabalhar, à procura de emprego ou a dar-se feliz por haver tantos lugares para estacionar o carro. Por outro lado, quem está de férias e procura passar o tempo livre nas salas escuras pode ter certas dificuldades em encontrar boas propostas uma vez vistos os "essenciais" (afinal, estamos na silly-season!). Em qualquer outra altura do ano, uma boa alternativa a um cartaz menos apelativo seria sempre a Cinemateca. Digo "em qualquer outra altura do ano" porque, como pode constatar quem visitar o site oficial do Museu do Cinema, as suas portas estão fechadas neste mês de Agosto!

A Cinemateca Portuguesa é uma das melhores instituições nacionais dedicadas à promoção da Sétima Arte em Portugal. Que disso não haja dúvidas. A sua rica programação, baseada num crescente arquivo que, se em 1989, contava com cerca de 800 longas metragens nacionais e estrangeiras (de acordo com João Bénard da Costa no seu livro "Os Filmes da Minha Vida - Os Meus Filmes da Vida), hoje tem um espólio bem mais considerável, tem feito as delícias de quem a tenha visitado nos restantes onze meses dos últimos anos. O preço acessível dos seus bilhetes; a bem apetrechada livraria da Ler Devagar (a única que parece verdadeiramente fazer juz à categoria de "Livraria de Cinema" em Portugal); o simpático café-restaurante, com a sua esplanada a servir as honras de projecções ao ar-livre nos meses de calor; as exposições periódicas; a biblioteca; a sala de projecções de DVDs... tudo isto são qualidades que quem já entrou no edifício situado na Rua Barata Salgueiro certamente não negará. Isto, claro, se o tiver visitado sem ser em Agosto!

Poderão dizer-me que Agosto é mês de férias e que os empregados da Cinemateca, como seres humanos que são, merecem um período de descanso como qualquer outra pessoa. Concordo absolutamente. Todos, dos projeccionistas à simpática senhora da bilheteira, passando pelos empregados do café e da livraria, merecem um mês de repouso.

O que não compreendo é porque é que a Cinemateca não contrata, nem que unicamente a título temporário, alguém que mantenha o funcionamento das instalações durante mais 31 dias (que nem chegam a isso, porque a Cinemateca ao domingo não tem projecções...). O país está com uma considerável quantidade de desempregados que, certamente de bom grado, fariam um bom trabalho por um ordenado mínimo; e mesmo que não estivesse, há sempre jovens (e não-tão-jovens...) que precisam de empregos em part-time no Verão. Muitos deles preenchem as qualificações mínimas necessárias para o funcionamento da Cinemateca e do seu equipamento (a programação poderia facilmente ser feita à priori pelas "autoridades competentes"). Porque não dar-lhes a oportunidade?

Pode parecer piquinhice insistir nesta questão. Mas o facto é que, para muita gente, a única altura do ano em que podem realmente visitar a Cinemateca é em Agosto. Falo daqueles que vivem fora de Lisboa ou que, vivendo na capital ou perto dela, passam o resto do ano minados por empregos ou cursos sufocantes que deixam pouco tempo para uma passagem pelo Museu do Cinema. Pensemos, aliás, neste último título. A Cinemateca, muito justamente, tem como nome alternativo "Museu do Cinema". E é-o. A preservação/conservação que tem feito de milhares de títulos nacionais e estrangeiros é um feito digno de todos os elogios e, verdadeiramente, uma actividade típica de qualquer bom museu. Mas não basta conservar os filmes - há que exibi-los, dá-los a ver tanto a "connaisseurs" como a "menos iluminados" que talvez apanhem o bichinho do cinema ao ver um ciclo de Billy Wilder ou de Ingmar Bergman. Nos outros meses, é isso que acontece. Quem quiser vê-los em Agosto descobrirá que não pode. O Museu está fechado para férias.

Conseguem imaginar que quem quisesse ver "As Tentações de Santo Antão" de Bosch no Museu Nacional de Arte Antiga durante o mês de Agosto chegasse às portas desta instituição e tivesse que se contentar por comprar um livro da Taschen para contemplar a obra-prima do pintor holandês? Pode parecer exagero, mas acho que esta "ficção" é em tudo comparável com o encerrar da Cinemateca em Agosto. Facto tanto mais chato quando se passa pelos sites da cinematecas de Paris ou de São Paulo e se vê a programação que têm agendada para este mês. Bem sei que são países com realidades económicas e sociais bem diferentes de Portugal. Acredito mesmo que seja o factor € o maior responsável pela não-actividade da Cinemateca am Agosto e não qualquer "má vontade" dos seus directores... mas custava «mesmo» assim tanto mantê-la a funcionar só mais um pouco?

Enfim, vemo-nos por lá em Setembro...

domingo, julho 25, 2004

"O Despertar da Mente" - A memória dos afectos


Joel Barish (Jim Carrey), um homem de carácter introvertido, descobre que a sua excêntrica namorada Clementine (Kate Winslet) recorreu a uma estranha operação para apagar todas as memórias que tem dele. Joel descobre a companhia que fez a operação e pede, num misto de "vingança ciumenta" e incompreensão, para submeterem-no ao mesmo procedimento. Só que a operação levar-lhe-á a fazer uma viagem pelas suas memórias da sua vida com Clementine e, uma vez iniciado o processo de apagamento, Barish redescobre as razões porque se apaixonou pela rapariga e porque a sua relação falhou, tendo que derradeiramente fazer uma escolha definitiva: esquecer ou lembrar.

Só agora tive a oportunidade de ir ver "The Eternal Sunshine of the Spotless Mind - O Despertar da Mente" de Michel Gondry, dois meses depois da sua estreia, numa sessão única à meia-noite no Monumental (na mesma sala que, habitualmente, está a projectar o Shrek 2). E devo dizer que se o Verão tem andado a justificar a sua alcunha de "silly season", a permanencia de filmes como este em cartaz é de nos deixar um pleno sorriso na cara.


O argumento de Charlie Kaufman (autor dos scripts de "Queres Ser John Malkovich?" e "Inadaptado") é, mais uma vez, absolutamente fabuloso. O seu talento de compor personagens fantásticas em situações extraordinárias mantém-se intacto, bem como a sua capacidade de jogar com (e contra) as convenções tradicionais da escrita de argumento de modo a tornar toda a história mais interessante. Isto porque o filme, abordando o tema da memória e das nossas recordações afectivas (um tópico que certamente faria a delícia de Alain Resnais, cujo "Hiroshima, meu Amor" parece ter influenciado a história aqui e ali), está contruído como se ele próprio se tratasse de um conjunto de memórias erráticas que caminha para a sua progressiva clarificação. Constroi-se como um puzzle, mas vive-se (e sente-se) com uma intensidade rara. É uma das histórias de amor (ou sobre o amor) mais sincera e genuinamente românticas que o ecrã nos deu nos últimos tempos.

Mas se é verdade que o argumento é um elemento determinante, não podemos esquecer (injustamente) a contribuição do realizador Michel Gondry, da directora de fotografia Ellen Kuras e do montadora Valdís Óskarsdóttir para o belo todo que é este filme. O primeiro porque, ao contrário de que muitos têm especulado, usa inteligentemente a sua herança de realizador de video-clips para dar ao filme o seu "quê" de fantástico e surreal que necessita, sobretudo nas sequências passadas na memória de Barish, onde os efeitos especiais que sugerem o "apagamento" das recordações revelam-se um prodígio que, ao contrário de muito do que se vê no cinema actual, contribui para a narrativa em vez de ser simplesmente um mero fogo de artifício visual. A segunda porque a imagem tem um papel fulcral raramente visto, com a câmara a usar o foco e o desfoco para sugerir o estado da memória de Barish; e por fim a montagem que, talvez mais do que tudo, constroi o ambiente confuso e perdido da mente de Barish, funcionando com a precisão de um relógio. E há, claro, as interpretações dos actores...


...e que interpretações! Jim Carrey, de novo, mostra que é muito mais do que um actor de caretas, conferindo à sua personagem uma complexidade dramática que assenta muito mais nos pequenos pormenores de comportamento do que em expressões corporais exageradas. São poucos os actores que conseguiriam fazer este papel com a mesma entrega e seriedade de Carrey. Kate Winslet, que parece determinada a mostrar que tem uma gigantesca versatilidade e que é muito mais do que a "Titanic Girl", está deslumbrante do princípio ao fim num papel que poderia facilmente cair na caricatura mas que, graças ao soberbo trabalho da actriz britânica, consegue ser profunda. E nos secundários há que destacar a energia de Kirsten Dunst, a sobriedade de Tom Wilkinson, a surpreendente timidez de Elijah Wood e a solidez de Mark Ruffalo.

(Spoiler Alert) Incrivelmente, um dos elementos que parece destoar é o plano final do filme. Porque não acabou o filme com aquele (lindo) diálogo entre Winslet e Carrey? De onde veio a necessidade de fechar o filme com um plano de neve que nos deixa (literalmente!) ao frio? (Spoiler End)

Mas para dizer verdade, pouco interessa. Não é certamente por este pequeno defeito que o filme será recordado... 

O Despertar da Mente (Eternal Sunshine of the Spotless Mind). Drama. 2004, EUA.
Realizador: Michel Gondry
Argumento: Charlie Kaufman
Elenco: Jim Carrey, Kate Winslet, Kirsten Dunst, Mark Ruffalo, Elijah Wood, Tom Wilkinson
Produção: Anthony Bregman & Steve Golin
Dir. de Fotografia: Ellen Kuras
Música: Jon Brion
Montagem: Valdís Óskarsdóttir
Cor, 108 mins.
Tradução: Fátima Chinita

Site oficial: http://www.eternalsunshine.com/