domingo, outubro 04, 2009

Geração perdida ou esquecida?

Numa altura em que parece haver uma pequena euforia em torno de Pedro Costa graças à retrospectiva da sua obra no Tate Modern e ao lançamento em DVD de "O Sangue", vale a pena chamar a atenção para o excelente artigo de Jorge Mourinha no Ipsilon, "Geração Perdida", sobre os seus antigos colegas da Escola de Cinema que trabalharam no filme e cujos contributos para a obra em questão e para o cinema português, em muitos casos, foram injustamente esquecidos ou menosprezados. Faltou falar da montadora do filme, Manuela Viegas, mas não deixa de ser um dos textos mais elucidativos sobre toda uma geração de cineastas cuja história ainda está por contar.

sábado, setembro 26, 2009

(Off-topic) Período de reflexão

Sobre o dia de amanhã, deixo dois pensamentos que esses génios da comédia que são Trey Parker e Matt Stone tão bem conseguiram cristalizar:





Para bom entendedor...

domingo, junho 28, 2009

THE AUTEURS – Uma outra forma de lidar com a net


Com tanta agitação actualmente em torno do tema da pirataria (cujo ponto mais fascinante será, certamente, a recente eleição, na Suécia, de um deputado do Partido Pirata para o Parlamento Europeu), vale a pena chamar a atenção para um novo serviço baseado na Internet que procura alterar as regras do jogo e oferecer uma alternativa viável e legal às pessoas que descarregam filmes através dos programas peer-to-peer.

The Auteurs é um site norte-americano que fornece acesso a uma imensa selecção de filmes de qualidade para visionamento em streaming de óptima definição – nele podemos encontrar títulos tão distintos como “Dogville” de Lars Von Trier, “O Despertar da Mente” de Michel Gondry, “Mulholland Drive” de David Lynch, “A Aventura” de Michelangelo Antonioni e inclusive algumas obras portuguesas como “O Fatalista” de João Botelho.

Cinema de autor, cinema independente, alternativo/experimental, clássico e mainstream sem ser “desprovido de visão pessoal” constituem o núcleo duro do catálogo do site. Os filmes estão disponíveis online através de protocolos assinados com entidades tão reputadas como a editora norte-americana The Criterion Collection e a World Cinema Foundation de Martin Scorsese – estando os títulos restaurados por esta última, aliás, a ser disponibilizados gratuitamente (e para todo o mundo) no site num gesto de verdadeiro serviço público que só se pode aplaudir de pé.

O preço médio de cada visionamento (para Portugal) é de cinco euros, sendo que o utilizador tem direito a ver o filme escolhido por um número de vezes limitado. Para além do serviço de video-on-demand através da consulta do catálogo, a apresentação dos filmes também é feita através de ciclos temáticos organizados pela equipa do site, e estes são complementados com artigos e dossiers criados especificamente para as suas páginas. Também funciona como uma espécie de rede social baseada nos modelos do FaceBook, MySpace ou Hi-5, tendo como enfoque principal os gostos cinematográficos definidos no perfil de cada um dos utilizadores. Existe igualmente um fórum onde se discutem os mais diversos temas (até o cinema português!) e onde a conversa geralmente mantém um nível argumentativo sólido. No fundo, procura-se criar um espírito de comunidade cinéfila num espaço virtual onde se pode alugar filmes.

Apesar das várias virtudes deste projecto há, no entanto, alguns defeitos que não o tornam tão apetecível quanto poderia ser e que merecem ser mencionados:

1 – O preço dos downloads é, sobretudo para um mercado não propriamente rico como o português, manifestamente elevado. Cobrar cinco euros (aquele que era, até há pouco tempo, o preço normal de um bilhete de cinema por estas partes) pelo visionamento em streaming de um filme de catálogo que o utilizador não pode guardar é um exagero que irá afastar muitos espectadores que prefiram gastar um pouco mais (ou, em vários casos, o mesmo ou menos!) para comprar a obra em DVD numa loja física ou online. Se o objectivo do serviço é ser uma espécie de evolução dos alugueres clássicos feitos num vídeoclube, os preços praticados deveriam ser semelhantes, ou seja, nunca superiores a qualquer coisa como 2,5 euros. E quando ficamos a saber que os nossos congéneres norte-americanos pagam cinco dólares (cerca de 3.55 euros, à hora a que escrevo isto) pelo mesmo serviço...

2 – A tecnologia streaming é impecável, não tendo absolutamente nada a ver com a qualidade dos vídeos do YouTube, mas deveria haver a possibilidade de se guardar o filme visionado, nem que seja por um preço adicional. Percebe-se que o streaming tenha sido adoptado de modo a evitar uma subsequente pirataria dos filmes descarregados do site, mas seria preferível utilizar uma tecnologia que permita o armazenamento legal dos filmes. Um dos aspectos mais característicos da cinéfilia é, precisamente, o coleccionismo, uma vertente completamente impossibilitada pelo streaming.

3 – Apesar do notável esforço de se demarcar dos restantes sites de video-on-demand que só disponibilizam os seus filmes para download em territórios específicos, o catálogo à disposição dos internautas portugueses está ainda bastante limitado aos títulos da distribuidora Atalanta Filmes – existem algumas honrosas excepções como o “After Life” de Hirokazu Koreeda ou o “Akarui Mirai - Bright Future” de Kiyoshi Kurosawa, mas o grosso dos filmes são os mesmos que podemos encontrar numa FNAC na secção de Cinema de Autor a um preço um pouquinho mais caro do que aqueles praticados no site (com a diferença significativa do cliente poder guardar os DVDs e vê-los as vezes que desejar durante o tempo que quiser). Note-se que as razões para estas limitações apontadas pelos responsáveis pelo site são completamente válidas: como cada filme tem os seus direitos comprados para cada país por editoras distintas, é certo que é difícil negociar com todas estas e conseguir acordos razoáveis, sobretudo quando, nalguns casos, só se quer comprar os direitos de um filme específico; e sim, é óbvio que é mais fácil negociar um catálogo inteiro do que um título em particular. Mas falta ainda dar alguns passos para tornar a selecção verdadeiramente “completa”, e acredito plenamente que sejam dados com a evolução do serviço.

4 – Por último, quem não conseguir ler inglês fluentemente vai passar alguns maus bocados, já que nem todos filmes disponíveis são apresentados com legendas em português (muitas vezes, a única opção disponível é a de legendas em inglês para filmes cuja versão original não é falada na língua de Shakespeare). Seria igualmente salutar que o site pudesse oferecer o download das legendas de cada filme à parte consoante as preferências do cliente. Pode parecer uma piquinhice numa época em que o inglês assume o papel de “novo latim”, mas é mais um aspecto que pode ser melhorado e que ajudará a aliciar novos espectadores.

Não se pretende, com estas observações, denegrir os objectivos do site – pelo contrário, creio que “The Auteurs” é um passo em frente significativo e inteligente no combate à pirataria e à consolidação do video-on-demand como nova janela de exibição, simplesmente precisa de ser aperfeiçoado aqui e ali. Para um projecto que ainda está na fase BETA, só se pode elogiar aquilo que já se conseguiu.

Acima de tudo, nota-se que The Auteurs é feito e mantido por pessoas que nitidamente amam o cinema, que têm uma visão verdadeiramente cinéfila do relacionamento de um espectador com um filme – e este é um aspecto nada negligenciável nestes tempos que correm.

quarta-feira, junho 10, 2009

O espólio de um mestre

Descobri recentemente nas páginas do Ípsilon que, para grande alegria de qualquer cinéfilo que se preze, está a ser colocado online grande parte do espólio do mestre Akira Kurosawa no site Kurosawa Digital Archive. Estão incluídos, entre outras preciosidades, story-boards, notas de produção e fotografias de rodagem bem como alguns itens mais peculiares - como um artigo escrito pelo cineasta japonês a elogiar a obra de John Cassavetes!

Para já, o site só está disponível em japonês, mas uma versão em inglês está prometida para breve - e o facto da navegação ser bastante simples e intuitiva só deve encorajar qualquer apreciador da obra do autor de "Os Sete Samurais" a passar algum tempo a explorar estes fabulosos arquivos.

Bill got killed...


David Carradine (08/12/36 - 03/06/09)

(Já vem com uma semana de atraso, mas não queria de modo nenhum deixar passar ao lado...)

domingo, maio 24, 2009

João Salaviza ganha a Palma de Ouro para Melhor Curta-Metragem em Cannes!


Foi com uma grande alegria que soube que o meu antigo colega João Salaviza recebeu, há pouco, a Palma de Ouro em Cannes para Melhor Curta-Metragem pelo seu filme "Arena". Já o tinha visto no Indie Lisboa, onde tive a hipótese de congratular o realizador pelo sucesso desta obra. Agora, só me resta bater as palmas: este é o maior prémio que um cineasta português recebeu em Cannes em toda a história do festival - não exactamente um feito pequeno! Saber que foi atribuído a alguém da minha geração cujo talento genuinamente admiro só torna as coisas ainda mais doces. Como depois da projecção no Indie, deixo aqui os meus mais sinceros parabéns ao João, de quem espero muitos e bons filmes nos próximos tempos!


terça-feira, maio 19, 2009

Globos de Ouro SIC (2009)


A cerimónia dos Globos de Ouro da SIC do passado domingo teve um único momento realmente memorável - aquele em que Nuno Lopes, ao receber o globo para melhor actor de cinema pela sua prestação em "Goodnight Irene" de Paolo Marinou-Blanco, convidou os restantes actores nomeados (Gonçalo Waddington, Ivo Canelas e o ausente Filipe Duarte) a subirem ao palco para serem igualmente aplaudidos e, de seguida, ofereceu o prémio a um dos seus mentores, António Feio, sublinhando que esta decisão não era motivada pela conhecida doença de Feio mas pelo facto de este ter sido sido seu professor e largamente responsável pela sua entrada no mundo da interpretação. Num discurso marcado pela simplicidade, aquele que é um (o?) dos maiores actores da sua geração teve um gesto de humildade e pura humanidade como há raros nestas cerimónias ao aproveitar os seus minutos no palco para reconhecer os seus pares e o seu mestre. Mereceu todos as palmas que recebeu - e a nossa admiração também.




Em complemento, veja-se o fantástico sketch alusivo à nomeação de Nuno Lopes d'os Contemporâneos que foi para o ar quase à mesma hora:

quarta-feira, maio 13, 2009

Os universos (televisivos) da crítica

Temos, semanalmente, nos nossos pequenos ecrãs (pelo menos) três programas distintos sobre cinema que são incrivelmente parecidos. O formato é essencialmente composto pela seguinte receita: trailers das estreias recentes, previews de filmes que aí vêm, apresentação do box-office português e norte-americano, entrevistas com as estrelas dos filmes (e, uma vez por outra, com o realizador), uma ou outra featurette dos bastidores de uma grande-produção... e pouco mais.

O que falta a estes programas? Numa palavra: crítica. Não parece haver espaço para uma análise dos filmes que estreiam nas nossas salas e nas prateleiras de DVDs das lojas. A excepção à regra é o espaço de João Lopes no Cartaz da SIC Notícias, que peca sobretudo pela brevidade que advém de ser um segmento num programa mais generalista.

Poderíamos tentar explicar a ausência da crítica dos pequenos ecrãs com uma justificação de que qualquer discussão ou análise de um filme afugentaria as audiências por ser "demasiado aborrecida". Mas um exemplo emblemático de como se pode fazer um programa de televisão sobre cinema que é ao mesmo tempo inteligente, popular e, acima de tudo, portador de uma perspectiva crítica, é o célebre "At the Movies", um talk-show semanal de 30 minutos apresentado durante anos pelo duo de críticos Roger Ebert-Gene Siskel, tendo este último sido substituído por Richard Roeper após a sua morte.

O conceito do programa é de uma simplicidade invejável: junta-se dois críticos num cenário básico (duas cadeiras e uma parede onde são "projectadas" imagens), um deles faz uma breve sinopse do filme em questão enquanto imagens deste vão passando e, feita a descrição sumária da narrativa, inicia-se um diálogo entre os dois onde se alterna a análise inteligente e o confronto de pontos de vista não raramente antagónicos, sem nunca cair numa conversa de surdos. O resultado é um belo momento de televisão, entertaining e didáctico no melhor sentido das duas palavras.

Veja-se, por exemplo, o modo como Siskel e Ebert fazem a crítica de "O Padrinho III" de Francis Ford Coppola e discutem o tópico polémico da interpretação de Sofia Coppola como Mary Corleone:



Ou o modo como divergem sobre "Veludo Azul" de David Lynch:



E como analisam uma cena de "Halloween" de John Carpenter:



Resta-nos só questionar qual a razão para não termos nada parecido com este programa na nossa televisão. Nuno Markl e Rui Pedro Tendinha, há uns anos, fizeram uma espécie de "adaptação" deste formato no Curto-Circuito com o segmento Cine-Bolso e o mínimo que se pode dizer é que deixou saudades.

É indispensável consultar o site oficial do programa, que dispõe de um precioso arquivo de vídeo onde estão guardadas todas as críticas gravadas desde a sua primeira emissão em 1986.

segunda-feira, março 30, 2009

Pequenas Alegrias - Love Letter to Japan



Vídeo original do tema "Love Letter to Japan" dos The Bird and the Bee. Uma boa descoberta destes últimos tempos.

domingo, março 29, 2009

"Espectadores de Elite" e "Espectadores Irrequietos"

“Na apresentação, em Lisboa, Serra, talvez com alguma ironia, apelidou-se o melhor realizador espanhol desde Buñuel, e queixou-se de uma incompreensão geral do público. Claro que os seus filmes estão reservados a uma elite. Uma elite esteticamente sofisticada, capaz de apreciar a beleza de uma boa fotografia, conhecedora da história do cinema e da sua cumplicidade com as outras artes, e sem sono. Os planos fixos, a montagem minimal, a reduzida acção, repudiam os espectadores mais irrequietos.”

Manuel Halpern, crítica a “O Canto dos Pássaros” de Albert Serra, in JL – Jornal de Letras e Ideias, nº 1004

Não sei o que é pior nesta citação. Não sei se é a típica vitimização do realizador (porque a culpa da má recepção de uma obra é sempre dos espectadores, esses malandros!, nunca do criador, que está sempre à frente do seu tempo...) misturada com uma auto-glorificação que não funciona nem como blague ou, antes, a curiosa descrição da “elite esteticamente sofisticada” que o crítico Manuel Halpern faz.

Acabei por me encontrar mais perturbado com esta assustadora ideia de uma espécie de “espectador de elite”, como se quem for “conhecedor da história de cinema, da sua cumplicidade com as outras artes” e não tiver sono não possa, de maneira alguma,  não gostar deste filme. Como se quem aprecie fotografia e não tenha problemas com filmes mais “lentos” não posso achar esta obra oca e superficial porque, se o fizer, passa à categoria de “espectador irrequieto”, uma espécie de mentecapto que não pertence “à elite sofisticada” que sabe como se deve, verdadeiramente, apreciar o cinema. Esta é, simultaneamente, uma visão redutora das pessoas que participam nesse fabuloso ritual que é ver um filme e uma visão “clubista” da arte cinematográfica que só se pode lamentar.

segunda-feira, março 09, 2009

Vicky Cristina Barcelona - Cómica Angústia



Não consigo deixar de ficar impressionado com o modo desinteressado como algumas pessoas acolheram a mais recente obra de Woody Allen. Falou-se aqui e ali de uma obra menor, de um filme feito quase “de encomenda”, “a despachar”, com actores atraentes a fazerem bons números e o realizador a entreter-se filmando belas imagens de “bilhete postal” de Barcelona e de Espanha, faunas bem diferentes da sua mui familiar Nova Iorque, palco quase natural do seu universo cinematográfico. Em suma, uma comédia light agradável, estival, bem construída, mas esquecível e, sobretudo, irrelevante no contexto da obra de Allen.

Ora, não sendo “Vicky Cristina Barcelona” um “Annie Hall” (nem tendo obrigação de o ser), o que temos neste filme enganadoramente descontraído é um discurso incrivelmente angustiante sobre as relações amorosas, com um ponto de vista pessimista que faz lembrar algumas obras de Ingmar Bergman. Há comedia, sim, há vários momentos em que nos rimos alegremente do que se está a passar no ecrã – mas o modo como o realizador desconstrói dois pontos de vista absolutamente antagónicos sobre o amor (uma visão, mais “conservadora”, de Vicky e outra, mais “liberal” de Cristina) e nos mostra o imenso vazio das personagens após todos os acontecimentos atribulados por que passam no Verão que o filme relata relembra-nos de que estamos perante uma análise das relações humanas (e das nossas noções do amor) que não é nada superficial.

Como praticamente todos os filmes de Woody Allen, esta é uma obra que realça o trabalho dos actores, e é quase óbvio destacar a prestação premiada de Penélope Cruz como um exemplo de como é possível dar vida a uma cena só pelo modo como uma personagem se mexe. Mas gostaria de referir especialmente o trabalho de Rebecca Hall, cujo nome tem sido, por vezes, injustamente ofuscado pelos do restante elenco principal. Hall tem aqui uma personagem muito mais difícil do que parece - o de uma mulher intelectual, conservadora, repleta de conflitos internos e várias contradições. Seria muito fácil cair no cliché da mulher tradicionalista frustrada, mas Hall consegue conferir à personagem uma dimensão bem mais profunda com o seu desempenho. Nesse sentido, embora Scarlett Johansson não esteja mal, a sua performance não é tão rica em nuances e na exposição de um mundo interior mais perturbado do que parece como a de Hall – é um trabalho conseguido, mas bem longe dos resultados fabulosos obtidos em obras como “Lost in Translation” ou “Match Point”. Javier Bardem, por sua vez, desempenha o seu papel com charme e inteligência e consegue que o seu artista-macho-cool seja mais complexo e interessante do que se poderia pensar à primeira vista.

O argumento de que esta é uma visão turística de Barcelona também me parece algo bizarro – se a narrativa parte do ponto de vista de duas turistas norte-americanas que vêm ou desenvolver uma tese (Vicky) ou passar férias (Cristina) no coração da Catalunha, é natural que a imagem, adequadamente, siga um ponto de vista turístico, isto é, a de alguém exterior àquele mundo, que só o consegue conhecer parcialmente. O objectivo não é fazer um filme sobre a realidade de Barcelona, mas sim o de acompanhar aquelas duas mulheres na sua viagem exterior e interior. Está coerente com a história que se pretende contar e apetece dizer que estranho seria se fosse de outra forma.

Esperemos, pois, que o Óscar atribuído a Penélope Cruz permita alguma reavaliação do filme – ou, pelo menos, uma catalogação mais interessante do que a de simples “Postal Ilustrado”.

terça-feira, fevereiro 24, 2009

Slumdog Millionaire

Gostei de "Quem Quer Ser Bilionário?" (Slumdog Millionaire) de Danny Boyle. Não achei o filme extraordinário, e muito menos isento de defeitos, mas encontrei nele imensas qualidades que me fizeram perceber o porquê de tanto entusiasmo e de tantas nomeações (e vitórias...) no ciclo de cerimónias de prémios que agora chegou ao fim com a entrega dos Oscars - e com a obra em questão a arrecadar o Oscar para Melhor Filme no fim da noite.

A equipa responsável pelo projecto descreveu o filme como um "conto de fadas", definição à qual eu acrescentaria o adjectivo "contemporâneo". Existe, no argumento de Simon Beaufoy, um sentimento de urgência de contar uma história que nos mostre o combate do ser humano perante a adversidade, a sua capacidade de "aprender com a vida", ultrapassar o seu obstáculo e tirar lições do seu esforço - com a preocupação fundamental de enquadrar esta história não numa floresta de gnomos e bruxas, como nos contos dos irmãos Grimm, mas no contexto da realidade de uma cidade dos nossos tempos. Ou seja, a necessidade de criar uma narrativa de esperança num mundo duro e actual,  de ter um pé no "realismo" e o outro no "sonho", sem nunca cair no ridículo ou disparatado. Esta é uma aposta muito arriscada, não sendo nada difícil cair numa xaropada moralista.

E é aqui que o filme de Danny Boyle consegue um equilíbrio raro - Jamal, o herói, é uma personagem que luta por aquilo que quer, que tem que enfrentar as dificuldades da vida e do meio em que está inserido... mas que, mesmo assim, não desiste, por muito duro, cinzento e complexo que seja o mundo em que vive.  Ao longo da história, acontecem-lhe coisas espantosas mas plausíveis, desde a chegada em helicóptero de uma star de Bollywood à sua surpreendente performance num concurso televisivo -  onde a sorte e o acaso jogam um papel tão importante como a astúcia do herói - e, apesar de tudo, o que se sucede é credível e a causalidade não é posta em causa, o que não deixa de ser um feito considerável. Há cenas que não funcionam tão bem (os turistas americanos que dão a nota de cem dólares, por exemplo), mas, no conjunto, o argumento encontra-se solidamente construído.

O estilo formal muito próprio de Boyle no "contar" desta história pode não ser do agrado de todos, mas está longe de ser o disparate superficial e sem qualquer "reconhecimento de herança cinematográfica" que por aí foi apregoado. Sim, a montagem pode ser acelerada ao ritmo de mil-cortes-por-segundo, os planos enquadrados de forma "torta"  e com uma câmara-à-mão nervosa, pode haver várias canções pop a aparecer de forma pouco habitual no decorrer de uma sequência, cada cena pode ser fotografada com centenas de filtros e efeitos de pós-produção - mas há toda uma concepção de narrativa e de construção dramática que, na realidade, vai beber muito mais aos ideais do cinema clássico do que a um mau videoclip. David Bordwell, aliás, explica isto de forma muito clara e desenvolvida no seu excelente texto de análise à obra de Boyle.

Falou-se, em vários sítios, da chamada "pornografia da pobreza" de que o filme seria um aparente e muito triste exemplo. Alicia Wells, no Times Online, chega ao ponto de dizer que Boyle é um realizador brilhante mas que mostrar violência com crianças é "Vile" - ou seja, sujo, porco, indecente. Igualmente, alguns críticos têm apontado a "pobreza de olhar" como factor para denegrir o filme. A eterna questão sobre "o que é pornográfico ou não" é interessante, mas seria mais interessante se quem atribui esta etiqueta explicasse, claramente, como se filma a pobreza, a miséria, a violência para com crianças e semelhantes atrocidades sem se cair no voyeurismo ou numa qualquer gratificação do espectador. Parto do princípio que o cinema, como as outras artes, pode confrontar-se com os aspectos degradantes da existência humana e reflectir sobre eles. Em relação à "pobreza do olhar", tópico vago que daria para um texto inteiro, digamos só que gostava de acreditar que não é por se filmar a miséria com um estilo de montagem acelerado e estilizado e não num único plano-sequência fixo que se vai determinar se um filme é ou não um dejecto...


Sobre a questão da verosimilhança no filme, e a recepção crítica deste, vale a pena ler:



sexta-feira, fevereiro 13, 2009

Nuno Bragança e uma sugestão...

A Dom Quixote vai reeditar a obra completa de Nuno Bragança neste mês de Fevereiro de modo a assinalar a passagem do octogésimo aniversário do nascimento do escritor, e o volume apresentado parece ser verdadeiramente fabuloso. Porém, reparei numa pequena ausência do espólio que talvez não incomode muita gente mas que, definitivamente, me chamou a atenção: a do guião de "Os Verdes Anos" de Paulo Rocha, para o qual Bragança assinou os diálogos. É certo que não é um romance, nem tão pouco uma obra de prosa, e é também verdade que Bragança foi um colaborador e não o autor da história. Mas, ainda assim, não seria esta uma boa ocasião para editar o argumento de uma obra para o qual o seu contributo foi decisivo? Ou, como alternativa limite, disponibilizá-lo como "extra" numa eventual (e há muito desejada) edição em DVD do referido filme?

quinta-feira, fevereiro 12, 2009

A Arte da Montagem - Uma Conversa entre Walter Murch e Michael Ondaatje


Aquando da pós-produção do filme "O Paciente Inglês" de Anthony Minghella, Michael Ondaatje, o autor do romance original que serviu de base à longa-metragem, ficou fascinado com o trabalho minucioso levado a cabo pelo montador Walter Murch na sala de edição. Este fascínio fez com que Ondaatje quisesse conhecer melhor aquele homem que tinha a particularidade de montar de pé "como um cirurgião realiza uma operação" e, depois, iniciasse um conjunto de entrevistas com ele que viria a formar o livro "The Conversations: Walter Murch and the Art of Editing Film".

Uma pequena introdução impõe-se, sobretudo tendo em conta que os montadores nunca são tão conhecidos como os realizadores. Pertencente à mesma geração de movie-brats onde se incluem realizadores como George Lucas, Francis Ford Coppola, Steven Spielberg ou Martin Scorsese, Walter Murch, ao contrário dos nomes citados, fez carreira longe das câmaras, trabalhando (quase) sempre na pós-produção como montador de imagem, designer de som e director de misturas, chegando algumas vezes a acumular todos estes cargos num mesmo filme. É largamente reconhecido como um dos mais importantes montadores vivos, e o seu livro, "In the Blink of an Eye: A Perspective on Film Editing", pode facilmente ser considerado um dos grandes textos da teoria contemporânea de montagem, ancorado numa larga experiência profissional na pós-produção de filmes tão marcantes como "Apocalypse Now" ou a trilogia "O Padrinho".

Um exemplo primordial do modo como a montagem, e o contributo pessoal do editor, molda uma obra cinematográfica surge no relato que Murch faz do seu primeiro trabalho como montador de longa-metragem no filme "O Vigilante" ("The Conversation", 1974) de Francis Ford Coppola. Um projecto antigo e muito pessoal do seu realizador/argumentista, "O Vigilante" foi rodado entre o final de "O Padrinho" e o início de "O Padrinho II", sendo que Coppola, por obrigações contratuais com a Paramount, foi forçado a partir para a rodagem do segundo volume da sua lendária trilogia sem poder participar na montagem do filme com o envolvimento que desejaria. Sem poder fazer muito mais, optou por deixar o material nas mãos de Walter Murch, limitando-se a aparecer nalgumas reuniões semanais para ver o modo como a montagem evoluía.


Com o realizador ausente e a dar carta-branca ao seu montador, Murch teve uma liberdade criativa pouco habitual na montagem do filme e, ao não limitar-se a "alinhar e cortar" o material disponível, reestruturou a narrativa, atribuiu novos significados a cenas problemáticas, criou a atmosfera de solidão e paranóia do filme através de um desenho de som minucioso e construiu um final marcante com o aproveitamento de uma má take de som (!). O resultado foi uma estrondosa obra-prima que arrecadou a Palma d'Ouro em Cannes no ano de 1974 e que permanece uma das obras favoritas do seu realizador.

Dividida em cinco extensas entrevistas, a conversa entre Ondaatje e Murch vai focando diversos pontos sempre com grande interesse e um bom ritmo, com o escritor a colocar perguntas do ponto de vista de um "leigo-culto" que nitidamente admira o seu entrevistado sem abdicar de dar o seu contributo pessoal para a discussão. Os diálogos abrangem temas tão distintos como o relacionamento entre realizador e montador; a criação e construção narrativa; técnicas e teorias de montagem (é reexplorada a célebre teoria do "piscar de olho"); a remontagem de "A Sede do Mal" de Orson Welles de acordo com as notas deixadas pelo realizador (naquela que é, actualmente, a única versão do filme disponível em DVD no mercado português); a adaptação literária em "A Insustentável Leveza do Ser" ou "O Paciente Inglês"; a sua tentativa de criar um sistema de partitura para o cinema semelhante ao que existe na música; o restauro digital de um curtíssimo filme-sonoro de Edison e a sua única experiência no campo da realização nessa encantadora fábula que é "Return to Oz" (1985).

Ao longo de cerca de 350 páginas, Murch revela-se uma fonte de sabedoria quase inesgotável, tão capaz de falar, num momento, de uma sinfonia de Haydn como, noutro, da poesia de Curzio Malaparte, sendo que a única área onde, a páginas tantas, confessa não ter grande conhecimento é precisamente... a história de cinema! Afirmação esta que, contudo, temos de aceitar como marca de modéstia mais do que verdadeira auto-análise - veja-se o modo detalhado como Murch teoriza sobre a importância que Edison, Beethoven e Flaubert tiveram na concepção do cinema como o entendemos e apreciamos hoje!

Tal como "In the Blink of an Eye", este "The Conversations" há muito que merecia uma tradução portuguesa - até porque transcende largamente a categoria de "livro técnico de nicho" que parece tornar a edição de textos ligados ao cinema tão difícil. Enquanto esperamos (ou não...), temos as edições de língua inglesa e, inclusive, uma espanhola (muito bem traduzida, diga-se de passagem) que costuma abundar pelas FNACs, para nos satisfazer...

quarta-feira, janeiro 14, 2009

O que é a Montagem (I)

Uma das pedras lapidares de toda a teoria da montagem (e do cinema tout court...) é o chamado "Efeito Kulechov". Trata-se de uma experiência formal levada a cabo pelo realizador/montador/professor russo Lev Kulechov* (com a participação de um aluno muito especial chamado Vsevolod Pudovkin) por volta de 1921 que consistia na projecção de uma sucessão de imagens perante um grupo de espectadores cujas reacções ao material com que foram confrontados fizeram história.

O enunciado teórico pode resumir-se à seguinte ideia: o posicionamento de um primeiro plano neutro em relação a um segundo plano neutro cria uma sequência cujo significado é inteiramente construído pelo espectador. Ou seja, a justaposição permite-nos estabelecer ligações entre dois planos que, por si só, nada dizem.

O seguinte vídeo ilustra o efeito na sua forma mais básica, procurando recriar a mesma sucessão de imagens montada por Kulechov a partir de planos do rosto do popular actor de teatro Mosjoukine posicionados com imagens tão diversas como a de um prato de sopa, a de um caixão de uma criança ou a de uma mulher deitada num divã:



Ainda hoje, o efeito Kulechov pode ser visto em toda a sua potência nas mais diversas obras audiovisuais contemporâneas (filmes, séries, clips, telenovelas, publicidade, etc). Veja-se a divertida explicação da aplicação prática do efeito dada por Alfred Hitchcock, que tão bem utilizou os princípios teóricos de Kulechov em toda a sua obra:



Uma versão mais alargada desta entrevista pode ser encontrada aqui. Há só que perdoar a má legendagem em castelhano...

* - É conveniente referir que a grafia do nome do realizador russo tem uma estranha variação conforme a língua dos textos que se consultar - em inglês, é habitual aparecer escrito como "Lev Kuleshov", com "s"; porém, os textos em francês costumam utilizar "Kulechov" - optei por utilizar a segunda hipótese, muito embora esteja consciente de que posso estar errado e de que não tenho quaisquer conhecimentos de russo que me permitam ter autoridade para determinar a transcrição correcta...