sábado, setembro 25, 2004

Evento: Indie Lisboa - Festival Internacional de Cinema Independente de Lisboa



A notícia já vem tarde, mas de qualquer maneira convém relembrar que começou ontem a primeira edição do Festival Internacional de Cinema Independente de Lisboa, um evento organizado na capital pela Associação Zero em Comportamento, os mesmos senhores que nos prestaram alguns ciclos memoráveis nas saudosas sessões de culto das quais o Cine-Estúdio 222 costumava ser palco. A programação está disponível em formato .pdf no próprio site, sendo de destacar a homenagem ao Festival de Cinema de Sundance.

O surgimento deste festival é uma autêntica lufada de ar fresco no panorama lisboeta, que antes desta iniciativa tinha como único ponto de referência o Festival de Cinema Gay e Lésbico de Lisboa (que, aliás, termina hoje a sua oitava edição). Esperemos que a adesão ao novo festival seja significativa para que, assim, este possa continuar, crescer e oferecer todos os anos novas e cada vez mais aliciantes propostas.

segunda-feira, setembro 20, 2004

Surpresas agradáveis: "Amor e Dedinhos de Pé" de Luís Filipe Rocha


A colecção de DVDs "Série Y" lançada no jornal "O Público" chegou recentemente ao seu fim, e calhou que o filme proposto para encerrar (definitivamente?) a colectânea fosse português. Como já é tradição, foi escolhido um título do catálogo da MGN Filmes, sendo este assinado por Luís Filipe Rocha, que já vira três outras obras suas ("Adeus, Pai", "Sinais de Fogo" e "Camarate") serem editadas na mencionada colecção.

"Amor e Dedinhos de Pé" foi o filme que marcou o regresso à sétima arte de Luís Filipe Rocha depois de um período de passagem por Macau em que não assinou qualquer obra. Adaptando, com a colaboração de Izaías Almada, o romance homónimo de Henrique Senna Fernandes, este retorno do realizador de "Cerromaior" não costuma ser o título mais referenciado quando se fala da sua carreira cinematográfica. Injustamente, parece-me: "Amor e Dedinhos de Pé" não só ilustra perfeitamente as preocupações de Luís Filipe Rocha na construçãoo de uma narrativa interessante e coerente como é, na minha opinião, o seu melhor filme.


A história situa-se em Macau, nos primeiros anos do século XX. Francisco Frontaria (Joaquim de Almeida), um bon-vivant filho de uma família prestigiada, passa a vida na borga com o seu circulo de amigos: de apostas manhosas, jogos de adultério e destruição de casamentos, tudo parece valer para fazer o tempo passar agradavelmente. O seu encontro com Victorina Vidal (Ana Torrent), a "Mulher mais feia de Macau", vai inicialmente não passar de uma birra entre os dois. Porém, as consequências das acções de Frontaria vão fazer com que ambos se voltem a cruzar, anos mais tarde, em circunstâncias muito diferentes. Circunstâncias que obrigarão duas pessoas aparentemente tão diferentes a entender-se e, também, a descobrirem-se melhor um ao outro...

Esta "aventura" macaense pressupunha vários riscos de produção. Riscos esses largamente ultrapassados: nunca se nota qualquer limitação de produção ou constrangimento orçamental na construção narrativa do filme. Não há "planos a menos" ou cenas tecnicamente mais fracas que destoem do conjunto. E a dobragem dos actores estrangeiros não distrai, o que é sempre de louvar numa co-produção.


O que surpreende no filme é a enorme qualidade de tudo o que o constitui: a belíssima fotografia de Eduardo Serra, as interpretações excelentes dos actores (e tenhamos em conta que Joaquim de Almeida e Ana Torrent têm cenas em que falam cantonês durante minutos a fio!), o mais que fiel trabalho de reconstituição da época, a realização segura e dinâmica. É uma história bem contada, com uma grande beleza visual, uma técnica impecável e um trabalho dramático bem acima da média.

Defeitos? O final é talvez o ponto mais frágil do filme, já que parece ter sido "feito a despachar". Sabe-se que o realizador e o argumentista optaram por escrever um final menos "delicodoce" e mais em-aberto do que aquele que se pode ler no romance, mas a cena final acaba por revelar-se demasiado abrupta. E o título do filme não é propriamente apelativo. No entanto, para quê ligar a estes pormenores quando tudo o que veio antes é do mais estimulante que a nossa cinematografia tem para oferecer?

Por €8.90, parece-me mesmo muito pouco...

quinta-feira, setembro 09, 2004

Chamada de atenção: "Chungking Express" em DVD na Premiere



Quem comprar a edição de Setembro da Premiere portuguesa, e não se importar de gastar mais uns miseros dez euros, vai receber um excelente presente cinematográfico: trata-se do DVD do maravilhoso "Chungking Express" de Wong Kar-Wai.

É difícil falar de um filme sobre o qual parece que (quase) tudo já foi escrito. Filmado num espírito de guerrilha completamente apaixonante, "Chungking Express" liga duas histórias de "amor solitário" passadas na cidade de Hong-Kong. Numa das histórias, um polícia de coração recentemente despedaçado passa os dias a tentar perceber porque foi deixado pela sua antiga namorada, enquanto vai devorando latas após latas de ananás prestes a ficar fora-de-prazo. Num acto de puro impulso, promete apaixonar-se pela primeira mulher que entrar no bar onde consola as suas feridas emocionais. A questão é que essa mulher acaba por ser uma passadora em fuga... Na segunda história, um outro polícia de coração recentemente despedaçado torna-se o objecto de adoração de uma empregada do "Expresso Chunking", um carrinho-ambulante onde o mencionado polícia costuma ir comprar o seu almoço. Ao som constante de "California Dreamin'" dos Mamas and Papas, a rapariga vai, aos poucos, entrando na vida do polícia, mesmo que não o faça pelas maneiras mais tradicionais... Tudo isto "pintado" através da belíssima fotografia de Christopher Doyle, interpretado por um elenco extraordinário e brilhantemente contado pelo Mestre de uma certa narrativa-poética que é Wong Kar-Wai.

Há quem tenha comparado este filme com "O Acossado" de Jean Luc-Godard. WKW não nega a homenagem, e julgo que a comparação é mais que justa. Como alguém escreveu no guia de filmes da Time-Out "This is what Godard movies were once like: fast, hand-held, funny and very, very catchy".

A edição portuguesa da Atalanta Filmes não tem quaisquer extras à excepção de trailers para este filme e para o "Fallen Angels", mas talvez servirá de consolo saber que não existem edições estrangeiras muito melhores (havia uma britânica ou americana que continha uma pequena introdução por Quentin Tarantino, mas nada mais). Por €12.50, é um crime passar ao lado deste filme magnífico!

Uma obra-prima em absoluto, a ver (de preferência) numa sessão-dupla com a sua semi-sequela, o extrarodinário "Anjos Caídos".

P.S. - Tanto o DVD de "Chungking Express" como o de "Anjos Caídos" estão à venda em Portugal ao preço confortável de €14,49. Portanto, se não conseguirem arranjar o primeiro pela Premiere e/ou quiserem revisitar a Hong-Kong de WKW, sempre têm bom remédio...

P.P.S. - Se tudo correr bem, quando "2046", o novo filme de WKW, chegar às salas portuesas, voltarei a este "Chungking Express" (e a outros filmes) para um texto maior e melhor sobre o cineasta de Hong-Kong e a sua obra...

Desconte-se o público!

Ao que parece, as exibidoras portuguesas já estão a reagir mal à Nova Lei do Cinema. O busilis da questão assenta na alínea da lei recentemente aprovada que dita a aplicação de uma taxa de 2% sob o preço dos bilhetes de cinema, sendo que os distribuidores são obrigados a investir (livremente) essa montante na produção nacional de cinema e/ou audiovisual.

De acordo com o noticiário da SIC Notícias, os distribuidores e exibidores estão a ponderar algumas medidas para lidar com esta sua nova obrigação. Uma delas passa pelo aumento do preço dos bilhetes (que, assim, ultrapassaria os já indesejáveis 5 euros) e a outra pela extinção dos descontos dos bilhetes à segunda-feira.

Qualquer uma destas soluções é, a meu ver, alarmante. O objectivo da Nova Lei (pelo menos na teoria) é o de dinamizar o sector do cinema português e tornar os distribuidores nacionais em investidores activos e com poder de decisão no que diz respeito aos montantes que investem. O problema é que subir o preço dos bilhetes ou acabar com os descontos de 2ª feira só resultará num afastamento incalculável das salas de cinema pela parte do público.

Os descontos de 2ª feira (bem como os provenientes dos cartões que o fornecem, como o Cartão Jovem) e o preço relativamente acessível dos bilhetes (abaixo de uma boa parte dos restantes países europeus) têm sido factores cruciais no crescimento diversificação da oferta cinematográfica em Portugal. Ainda assim, se actualmente um "português médio" já tem dificuldade a desembolsar cinco euros por um bilhete e, portanto, tem tendência a ir ver os filmes "de que está habituado a gostar" (ie: blockbusters e grandes produções americanas) em vez de experimentar algo de novo ou do qual tem uma imagem não muito boa (ie: os filmes portugueses!); com o aumento do preço dos bilhetes, menos o espectador arrisca, menos público tem o cinema português e as restantes cinematografias mundiais. E o fundo de investimento acaba por cair em saco roto...

quarta-feira, setembro 01, 2004

"Spartan - O Rapto"


Scott (Val Kilmer), um agente das forças especiais norte-americanas, é destacado do seu actual posto de treinador de soldados debutantes para participar numa missão muito particular: resgatar a filha do presidente dos EUA, que foi raptada quando o seu guarda-costas não lhe estava a prestar atenção, sendo que o seu resgate tem que ser realizado o mais rápido possível pois, no fim de contas, as eleições estão à porta... A investigação que se segue, porém, vai revelar que o que está em jogo é muito diferente daquilo que se esperava.

A sinopse atrás apresentada poderia sugerir que "Spartan" se trata de um banalíssimo filme de acção saído das majors norte-americanas, pronto a ser visto e esquecido pelos espectadores de fim-de-semana como mais um blockbuster oco e vazio de conteúdos, mas cheio de explosões, tiros, perseguições de automóveis e mulheres de corpos esculturais. A trailer também dá essa sensação. Mas há um nome na ficha técnica que nos convida a olharmos com (bem) mais atenção: David Mamet.


É a pista certa para entrarmos no filme. Não é a primeira vez que o célebre dramaturgo/encenador e argumentista/realizador experimenta a sua mão no thriller (veja-se o hitchcockiano "House of Games - Jogo Fatal"), e se pensarmos que muitos dos deliciosos (e ácidos) diálogos de "Manobras na Casa Branca" de Barry Levinson são da sua autoria, não é de admirar que este seu regresso ao género surja temperado com uma dose bem forte de crítica política. De facto, "Spartan" não é só um thriller emocionante e extremamente bem construido - é, também, uma reflexão irónica sobre o actual clima político norte-americano, sobre a ilusão das aparências (um tema muito querido a Mamet), sobre a degeneração da família tradicional, sobre a manipulação política a e obediência cega imposta pela instituições militares aos seus soldados. Nesse sentido, a invocação da mitologia do rei Leónidas de Esparta (que enviava um só homem para atacar de surpresa os seus adversários em detrimento de mandar batalhões inteiros) na figura de Scott resulta tanto mais poderosa.

À semelhança de "Jogo Fatal", o argumento é construído como o acto de descascar uma cebola, expondo camada após camada e revelando, de cada vez, um novo e inesperado caminho para a história. A mestria de Mamet está na maneira como cria os "twists" com a maior das verosimilhanças, bem como no modo como brinca com as emoções dos espectadores com cada nova reviravolta. Joga sabiamente com algumas convenções do thriller e do filme de acção, não caindo em nenhuma das armadilhas que uma tal "mistura" poderia originar.


E, depois, há os diálogos. No seu livro "On Directing Film", Mamet expõe uma teoria acerca da narrativa cinematográfica que tem deixado mais do que uma pessoa ligeiramente baralhada: "Basicamente, o filme perfeito não tem diálogos. Deve-se sempre ter como objectivo fazer-se um filme mudo"* Estas afirmações podem parecer irónicas para quem já tenha ouvido as frases sonantes ditas pelas personagens de obras como "State & Main". No entanto, nesse mesmo parágrafo, Mamet também diz que "...se estamos a contar a história com as imagens, então os diálogos são a cobertura por cima do gelado". Assim o é em "Spartan". Porque se realmente os diálogos desempenham um papel crucial na composição das personagens e no avanço da narrativa, também é verdade que a sua eficácia é possível graças a uma découpage minuciosamente pensada, a uma direcção de fotografia impecável, a uma montagem precisa e a uma música de fundo que estabelece perfeitamente o ambiente.


Há também que referir o soberbo trabalho dos actores. Val Kilmer tem aqui aquele que é muito provavelmente o melhor dos papéis que desempenhou nos últimos anos, sendo que Derek Luke, Tia Texada e Kristen Bell têm todos composições acima da média. Lamenta-se, simplesmente, que a personagem de William H. Macy (bem mais importante do que parece) não seja mais explorada e, por consequência, não tenha mais tempo no ecrã. A interpretação de Macy é correcta a todos os níveis, e chega mesmo a proporcionar-nos alguns momentos excelentes, mas como contraponto à personagem de Scott, acaba por não ter o desenvolvimento que se desejaria.

Não que isso prejudique tremendamente o resto do filme. Continua a ser um dos títulos mais interessantes actualmente em sala e um thriller notável.

Spartan - O Rapto (Spartan)
Thriller, EUA, 2004

Argumento e realização: David Mamet
Elenco: Val Kilmer, Tia Texada, Derek Luke, Kristen Bell, William H. Macy.
Produção: David Bergstein & Moshe Diamant
Dir. de fotografia: Juan Ruiz Anchía
Música: Mark Isham
Montagem: Barbara Tulliver
Som: Felipe Borrero


* A tradução livre é da minha autoria, visto que o livro "On Directing Film" nunca foi publicado em Portugal. Para quem a quiser arranjar (vale bem a pena), a edição em língua inglesa da Penguin Books ainda está disponível no site da Amazon britânica.

Só umas poucas palavras sobre "Wanda"

Confesso que não consigo partilhar o entusiasmo que Isabelle Huppert e muita da crítica têm tido por "Wanda", o único filme que Barbara Loden (mulher de Elia Kazan) realizou e protagonizou em 1971 e que só recentemente estreou entre nós. Tem sido dito por aí que se trata de "um dos melhores filmes norte-americanos dos anos 70", ou até mesmo de uma "obra-prima negligenciada". A primeira observação parece-me completamente exagerada, sobretudo tendo em conta de que se trata de uma década que nos brindou com tantos filmes memóraveis que fazer aqui uma lista seria uma tarefa (quase) interminável! Com a segunda também me parece difícil de concordar: embora "Wanda" tenha uma ideia de partida interessante e algumas sequências bastante bem pensadas e dirigidas (como é o caso da cena em que Wanda pede emprego numa fábrica de tecelagem, bem como a do assalto ao banco), o filme não deixa de passar uma sensação de "à-deriva" que nos deixa emocionalmente desligados dos dramas e tragédias da personagem principal. A fragilidade de algumas interpretações (sobretudo de alguns actores secundários) e o distanciamento e quase-indiferença que Loden cria entre Wanda e tudo que lhe rodeia fazem com que, quando o filme chega ao fim, não nos sintamos realmente muito afectados com aquilo que vimos. Faz, por vezes, lembrar vagamente algumas obras de John Cassavetes, mas falta qualquer coisa...

No entanto, a memória da interpretação de Loden enquanto irmã outsider de Warren Beatty no maravilhoso "Esplendor na Relva" continua a ser marcante...