segunda-feira, agosto 08, 2022

"A Mulher do Espião" (スパイの妻 - Supai no Tsuma, 2020) de Kiyoshi Kurosawa

  

        Por uma coincidência assaz oportuna, calhou que 77 anos após o hediondo atentado contra a humanidade que foi o lançamento da bomba atómica na cidade de Hiroshima estivesse em exibição em algumas salas de cinema portuguesas a longa-metragem “A Mulher do Espião” de Kiyoshi Kurosawa, autor de obras marcantes do cinema japonês contemporâneo como “Kairo”, “Cure” ou “Tokyo Sonata”. Trata-se de um telefilme de 2020 posteriormente ‘convertido’ ao grande ecrã que arrecadou o Leão de Prata para Melhor Realização no 77º Festival de Veneza e que conta com um argumento original escrito pelo próprio realizador em colaboração com Tadashi Nohara e Ryusuke Hamaguchi - sendo este último ex-aluno de Kurosawa e um nome que os cinéfilos certamente reconhecerão pela sua mui aplaudida adaptação e realização do filme “Drive My Car”.

        Dizia que se trata de uma coincidência oportuna porque, não sendo um filme que aborde directamente o bombardeamento de Hiroshima (embora lhe faça uma referência nos momentos finais), mostra-nos uma faceta da história da Segunda Guerra Mundial que não é muito comum surgir retratada na ficção japonesa que de vez em quando chega aos nossos grandes e pequenos ecrãs: a da oposição interna ao governo nipónico durante os anos de ‘expansionismo’ do Império e da sua consequente aliança com o Eixo Italo-Alemão. Numa altura em que assistimos atónitos a uma guerra que nos convida a dividir o mundo em “bons” e “maus”, reduzindo populações inteiras de países ao estatuto único de “vítimas” ou “opressores” acríticos, a obra de Kiyoshi Kurosawa tem o grande mérito de nos mostrar que mesmo no seio de uma sociedade dirigida por uma ditadura nacionalista aparentemente consensual, há quem não consiga virar a cara à barbárie ou assistir passivamente à degradação do(s) outro(s); quem esteja disposto a arriscar a sua vida e a segurança daqueles que ama em nome de uma causa maior - e que, mesmo assim, não deixe de ser humano e, portanto, igualmente capaz de cometer actos tristemente deploráveis. As personagens desta história são tridimensionais: nem os seguidores do imperador Hirohito são todos monstros abomináveis, nem os cidadãos que resistem à deriva belicista um exemplo inatacável de bondade e altruísmo; todos têm os seus sonhos, desejos íntimos e frustrações pessoais, e é do choque desses elementos antagónicos que nasce o conflito que alimenta a história.
     
        Cada twist narrativo (e há vários) é exemplarmente executado com uma credibilidade à prova de bala e uma eficácia ímpar. E se falta algum impacto dramático ao final da narrativa, tudo o que lhe precede é tão esplendorosamente dirigido e escrito que facilmente perdoamos esse pequeno passo menos bem dado. Atente-se, por exemplo, à magnífica interpretação de Yu Aoi ao longo de todo o filme, um prodigioso trabalho de construção de personagem que comove e surpreende a cada nova cena. Ou admire-se a falsa simplicidade da realização de Kurosawa, sempre atenta ao sub-texto de cada cena e ao pulsar íntimo das pessoas que filma.
 
          Ver agora uma obra destas, ‘pintada’ em tons de cinza, poderá ser uma modesta mas sincera homenagem à memória das vítimas reais de um massacre causado por líderes de nações incapazes de ver além de uma doentia fantasia de domínio mundial. Até porque uma desgraça desta dimensão, ao contrário do que refere a célebre frase de Marx, ao repetir-se, nunca assumirá uma forma de farsa - mas apenas a de uma tragédia ainda maior.

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