segunda-feira, outubro 04, 2004

Comentário (sobretudo) sobre a narrativa de "A Vila"

"A Vila" (The Village) é um filme que suscitou, aquando do seu lançamento nas salas, uma divisão tremenda entre os que o viram- ora uns o defendiam como a melhor obra do seu cineasta e a prova de que este é muito mais do que um dos novos mestres do suspense, ora outros diziam que o filme falhava totalmente. Não acho que me encontre em nenhum destes polos opostos, mas o certo é que, até agora, "A Vila" é o desapontamento do ano, pelo menos para mim. Antes de continuar, há que dizer que sou fã da obra de M. Night Shyamalan e que esperava este "A Vila" com grande ansiedade. Acredito que o cineasta é um dos mais interessantes realizadores contemporâneos a trabalhar nos EUA, e basta olhar para o resto dos seus filmes para perceber que Shyamalan não é de todo um tarefeiro confortavelmente instalado no sistema de Hollywood mas sim um Autor, com um universo muito pessoal e dotado de uma grande capacidade de falar com o público. Como muitos outros, adorei "O Sexto Sentido", gostei bastante do "Unbreakable - O Protegido", e achei que o "Signs - Sinais" fazia todo o sentido e que foi muito subestimado pela crítica.


No entanto, não consigo olhar com a mesma satisfação para "A Vila". O seu principal defeito não é, como muitos já escreveram, o facto de não ser verdadeiramente um filme de terror carregado de "twists" e momentos de arrepiar como os títulos anteriores - aliás, até diria que a primeira parte do filme contém momentos de puro horror muito bem construidos que fazem perceber que Shyamalan não perdeu o seu toque. A questão fundamental está no argumento. É impossível descrever as falhas deste sem estragar o enredo do filme, portanto, aconselho a quem ainda não o viu e quiser desfrutar plenamente da história a saltar os próximos quatro parágrafos. Os restantes estão avisados...

- SPOILER ALERT -

Se olharmos bem, o cerne da história tem uma premissa genial - a ideia de, em pleno século XXI, existir uma aldeia escondida do resto do mundo numa reserva natural concebida por um grupo de anciãos que visa manter a inocência e pureza dos seus aldeões (que permanecem na ignorância e pensam que vivem no século XIX) isolando-os lá usando, para os assustar, uma mitologia da existência de monstros na floresta que os cerca é, de facto, uma brilhante setup para um filme, podendo até ser vista como uma metáfora de uma América que, nos dias de hoje, prefere isolar-se do resto do mundo no seu "combate ao terror/mal" de modo a preservar a sua "inocência" das mãos de "monstros da floresta" criados pelos seus próprios dirigentes unicamente para sustentar uma sociedade baseada no medo constante. A ideia de alguém vir perturbar a normalidade daquela aldeia ao desconfiar que "há segredos por todo o lado" e ao desejar entrar na floresta também é fabulosa. O problema é o modo como Shyamalan desenvolve estas ideias. Para começar, o romance entre o solitário Lucius (Joaquin Phoenix) e a cega Ivy (Bryce Dallas Howard), que será o verdadeiro ponto de partida para o conflito dramático do filme, é inserido quase a pontapé na narrativa, não nos dando tempo para conseguir achar aquela relação real. Sabemos que, quando eram miúdos, gostavam muito um do outro e é desses tempos que remonta a sua paixão actual mas, para além de uma cena (das melhores do filme) em que Lucius salva Ivy de um dos "monstros", não vemos aquela relação crescer nem nos é (suficientemente) dada a ideia de que ali estava uma "paixão contida" estabelecida há anos. O triângulo amoroso com Noah (Adrien Brody, em grande forma) é uma concepção infeliz, e não consigo de deixar de achar de muito mau gosto a ideia de fazerem de um atrasado mental o antagonista de Ivy, isto para não falar na ridícula cena em que os anciãos descobrem que Noah encontrou um fato de monstro debaixo do soalho da casa de castigo - caramba, tinha LOGO que ser ali que o iam esconder???

Quem realçou como característica autoral de Shyamalan os twists narrativos que tão bem resultaram no "Sexto Sentido", no "Sinais" e até no "Unbreakable", vai encontrar aqui um exercício muito menos eficaz dos mesmos. A revelação de que toda aquela sociedade é uma farsa (o principal twist) surge cedo de mais na história, não é um «murro no estômago» tão forte quanto poderia ser e deixa os restantes minutos do filme sem a grande tensão de suspense que até então fora construida. Quando Ivy chega ao exterior da reserva, por exemplo, as cenas carecem de alguma força dramática porque aquilo que vemos não é verdadeiramente chocante nem revelador - o que ressalta é o efeito cómico das reacções estupefactas do polícia! O outro twist (o ataque de Noah vestido de monstro, que durante alguns segundos faz-nos crer que, afinal, sempre há demónios na floresta) é um «cheap-shot» que se revela froxo e pouco imaginativo, como se tivesse sido inserido para dar alguma dinâmica a uma situação, de resto, pouco interessante.

Igualmente, a personagem fulcral de Walker (William Hurt) é muito pouco credível - quem consegue acreditar que um "avôzinho" tão querido, doce e simpático seja a mente perversa por de trás de um esquema tão diabólico? Nunca conseguimos não simpatizar com aquela personagem que passa grande parte do tempo a gabar as virtudes de Lucius, nem vislumbrar nele um lado perverso capaz de arquitectar toda aquela farsa. Aliás, se o romance entre Lucius e Ivy parece forçado, já a relação entre Walker e Hunt (Sigourney Weaver) parece ser a mais convincente e interessante de todo o filme - e por isso mesmo é uma pena que o realizador não lhe dê mais atenção. Como também é pena que o amigo de Lucius (aquele que faz a vigia da aldeia) desapareça da história a certa altura sem deixar qualquer rasto - era dos poucos elementos que verdadeiramente humanizava a personagem de Lucius.

Por fim, Shyamalan escolhe encerrar o filme com um final em aberto não muito feliz. O problema assenta no facto do realizador ter-nos deixado com perguntas que, a meu ver, precisavam pelo menos de algo que nos deixasse uma sugestão do que iria acontecer muito depois do rolar dos créditos. Podia ficar no ar qual a maneira como os aldeões reagiriam à descoberta de que a vida que tinham tido até então era uma pura encenação, mas a questão é que nem nos é dado a saber se eles alguma vez descobrirão isso (a cena final, com os anciãos a debaterem o assunto e Ivy a fazer o seu regresso, não sugere nem que a "verdade vá ser dita" nem que tudo vá ficar na mesma - não sabemos sequer se Ivy tem intenções de contar tudo aos aldeões!). Daí que, mesmo como uma eventual crítica política, acabe por se revelar ineficaz. E, como história de amor, pouco comovente.

- SPOILER END -

Acrescentemos a isto alguns diálogos francamente maus ("The world moves for love. It kneels before it in awe!") e uma música de fundo que alterna entre a muito bem colocada e a excessivamente presente, e temos um filme que poderia ter sido mesmo muito melhor. Naturalmente, existem pontos positivos que convém realçar: Bryce Dallas Howard é uma verdadeira revelação; a direcção de fotografia de Roger Deakins dá uma beleza visual enorme à pelicula e, juntamente com um trabalho de direcção de som várias vezes soberbo, cria o ambiente necessário. O guarda-roupa, a direcção de actores e a art-direction também são factores muito positivos a ter em conta.



Um passo em falso. Mas Shyamalan não deixa de ser um realizador de enorme talento, e o seu próximo filme, que já garantiu ser consideravelmente diferente de todas as obras anteriores, promete dar-nos a ver novas qualidades do autor de "O Sexto Sentido".

9 comentários:

eli disse...

Apenas o tempo justo para deixar um abraço e agradecer este post. Havia alguns aspectos que me tinham escapado e outros que me tinham sido menos claros. Agora posso compreendê-los melhor.
Beijo de boa noite ;-)

Anónimo disse...

Para começar, gostei muito do "A Vila" e creio que muito dos erros que apontas no argumento são muito subjectivos, na medida em que tenho uma visão totalmente diferente. Para mim, há um twist absolutamente genial e que nem falaste nele, que é o facto de a história desde o inicio e pelos trailres dar a entender que o protagonista e herói da história (consequentemente, quem vai atravessar os bosques) é Lucius (J.Phoenix). Essa é uma reviravolta na história essencial (aquela facada dada pelo Brody é um choque brutal, pois tudo parece indicar que o Lucius vai casar e vai atravessar os bosques). Depois dizias que achas "má onda" por um louco como antagonista, precisamente por ser louco é que pode ser o antagonista pois é o unico que vai contra os principios criados pelos anciões (não violência e especialmente, não matar.) Por isso é que o Brody é o único que se diverte quando se persentem monstros, porque ele, por ser louco vai contra o que é suposto fazer e sentir. Dizias que o facto da revelação da farsa é feita demasiado cedo, e eu acho que faz todo o sentido ser naquele ponto pois, assim que ela sabe que é tudo mentira não devia haver razão para temer mais, mas ela fica aterrorizada à mesma e isso pode-se entender como o poder da fantasia soprepõe-se ao da racionalidade (e tambem nós espectadores sentimos o medo dela, e isso é que é genial, o facto do realizador brincar com o que tu sentes e acreditas, pois só depois de se saber que quem estava ali era o Brody é que voltamos a não acreditar nos monstros). A sátira politica/social que tu falavas fica clara quando no momento a seguir vemos o Shyamalan a ouvir e a ler as notícias actuais da América e a sua guerra. Creio que a relação de amor entre Lucius e Ivy está latente na maneira como desde inicio os dois se olham/falam/não tocam/etc. pois é dessas pequenas subtilezas do amor que o filme fala. Assim quando ele se declara a ela não é surpresa (até se pode dizer que a relação dos dois é a concretização natural do amor Platónico da mãe de Lucius e pai de Ivy). Depois e por último dizias que o final ficava demasiado em aberto, sem se saber que rumo ia aquela comunidade tomar, em primeiro, naquela reunião final os anciões decidem manter a farsa de modo a que o sonho deles não morra, porque na opinião deles é o único modo de fugir à violência e decadência da sociedade em que viveram, depois partece do principio que Ivy aceitou ser guardiã com Lucius do segredo porque ela engana aqueles dois rapazes que a acompanhavam quando já sabia a verdade, e o Lucius eu acho que desde sempre desconfiava ou sabia que tudo era falso porque aquela confiança sobre-Humana só se explica desta maneira, ele já sabia a verdade. Depois não concordo contigo quando dizes que supostamente o personagem do W. Hurt é o "mau da fita" ou o arquitecto perverso, axo que ele como qualquer um dos outros anciões partem de uma ideia base positiva, construir uma comunidade pacifica, que para isso tem de ser intimidada a nunca sair dali. Claro que isto é muito questionável éticamente mas isso não faz deles necessáriamenente os vilões ou personagens diabólicas. Acho que o verdadeiro vilão é a fantasia e o medo que enganam os protagonistas, os habitantes da vila e principalmente o público. Queria só terminar a bendizer o plano-sequência final que para além de ser um "fechar do pano" visualmente muito bom, tem uma mise-en-scène brilhante. Outra sequncia genial e de mestre é aquela em que surge o monstro de repente e que tocam os sinos de alerta com o povo todo a fugir e a esconder-se. Grande momento e que tenção se vive! Mas ainda a um ponto que me escapava,dizias que aquele diálogo em que se louva o amor como força implacável era muito cliché (não sei escrever a palavra correctamente!), pois essa é a frase chave do filme! Pois porque é que achas que a Ivy vê cores das pessoas, que na cena do baile do casamento a Ivy é logo amparada pelo Lucius (como dois imanes quase...), porque que se fala tanto de amor no filme e porque que uma cega atravessa um bosque e vai para um mundo desconhecido sem ajuda movida apensa pelo amor. Talvez essa seja a moral do filme! Afinal de contas em todos os filmes do Shyamalan há sempre intriga de romance (tal como o Hitchcock).
Acho que o filme merecia uma segunda visão de modo a não haver uma reflecção superficial do filme, pois parece-me que não é um filme simplista, pelo contrário parece-me muito bem pensado visualmente, sonoramente ( e que trabalho de mestre no som!...) e principalmente no argumento, de modo a o filme resultar como filme de terror mas também como metáfora.
Para terminar, digo que concordo contigo a 100% em relação à estreia brilhante da Bryce D.Howard, à composição do Brody e a interpretação subtil mas profunda da S. Weaver e W. Hurt.
Filmes destes, dá vontade de gastar 5 € no cinema! Para quando filmes assim cá por nossas terras???? será que vamos ficar sempre ou por Quintos Impérios ou por Balas e Bolinhos???
Um bom ano para ti, que tudo te corra no melhor e que aprendas ao máximo que isso é que importa! Força ai!

Sam "lone prospector" Horta

André P. Marques disse...

ricardo. daqui fala o seu colega andré. tou desapontado consigo. 2ºf tá fodido.

www.vulgarissimo.blogspot.com
\m/

Francisco disse...

O Samuel "resumiu" tudo aquilo que eu queria dizer sobre este filme e repito o que eles disse: dá prazer gastar 5€, ou no meu caso, 6€80 ;)

André P. Marques disse...

sim.. talvez tenha exagerado num ou dois pontos.. mas e aquela banda sonora.. eh metade do filme :D

sam horta.. o ke andas fazendo rapaz?

went
a.m.

Ricardo Gonçalves disse...

Bem, antes do mais devo dizer que fico contente de ver que o post suscitou estas opiniões! 5 comments é obra neste blog! Estava à espera de que houvesse uma enorme discórdia em relação aos pontos que elaborei, já que uns 95% da blogosfera adoraram o filme, ao contrário de mim!

No entanto, não acho que o que escrevi tenha sido fruto de uma visão superficial do filme - como disse no 1º parágrafo, creio que a ideia de partida é genial, simplesmente não foi bem desenvolvida. Mas comentemos o que o nosso caro Samuel disse. :)

- O "twist" da troca de protagonistas é a veia hitchcockiana de Shyamalan a funcionar (vide "Psico"), e acho que até resultou bem. Aliás, nesse momento do filme, eu estava muito interessado a pensar no que viria a acontecer, até porque a Ivy estava a revelar-se uma personagem bem mais fascinante do que Lucius! O problema é o que veio a seguir...

- Não disse que o William Hurt fosse "O mau da fita", nem quis reduzir as personagens do filme a etiquetas de "bons" e "maus". Acredito que aquela personagem fosse criar a Vila com todas as boas intenções do mundo - simplesmente, como sabemos, o inferno está cheio de boas intenções. Não acredito que alguém seja "100% bom ou 100% mau", e acho que nunca no filme nos é dado a ver um lado mais "perverso" da personagem, um lado capaz de agir de modo egoísta e impôr a sua visão do que uma vida em comunidade deve ser a todo um grupo de pessoas. Como disse, ele passa grande parte da fita a elogiar Lucius, que é o exacto oposto dos ideais que ele defende. Para mim, era como ver uma figura Salazarista a tratar um comunista de forma ternurenta num filme sobre o fascismo em Portugal! E mesmo que mantivéssemos os elogios a Lucius (apesar do que disse, também acho que é possível admirar-se certas qualidades do "adversário"), nunca conseguimos, no resto da suas cenas, ver um instantezinho em que pensemos "de facto, esta personagem era capaz de ter feito uma coisa destas".

- Continuo a achar que o final não responde a grande coisa. A Ivy, parece-me, aceita não revelar a farsa aos seus acompanhantes pois está consciente de que, se o fizesse, o mais provável é que fosse desencadear imediatamente o caos no seu grupo e na aldeia, quando o mais importante na altura era ir buscar os medicamentos. Agora, no final, acho que chega a altura em que fica no ar a pergunta "Okay, e agora o que fazemos em relação a esta fachada tendo em conta que uma habitante sabe da realidade?" e não há qualquer resposta nem insinuação. Devo dizer-te que até cheguei a pensar que os Anciões estavam a perceber que aquela farsa não podia continuar e que tinha falhas nítidas que seriam expostas mais cedo ou mais tarde. E no entanto...

- Gostei da ideia da Ivy ver as cores interiores das pessoas, mas acho que aquilo que o Walker diz sobre a força do amor podia ser dito de forma menos pomposa e menos artificial.

Outras coisas de que não gostei:

- A cena em que Ivy explica à irmã que vai casar com o apaixonado dela (enquanto que ela já está casada com um idiota de que não gosta...) pareceu-me completamente falsa. Não consigo acreditar que alguém fosse reagir tão bem e aceitar harmoniosamente aquela situação, mesmo que a mentalidade das raparigas seja do século XIX. No entanto, a cena é despachada, até porque temos coisas mais importantes para contar.

- O marido da irmã de Ivy é uma caricatura grotesca. Só faltava trazer um cartaz a dizer "bimbo estúpido e mau", e faz-me lembrar a personagem do Billy Zane no Titanic que, quando via um quadro do Picasso, dizia qualquer coisa do género "Quem é esse gajo? Que quadro mais horrivel, nunca há de ser ninguém!".

Devo confessar que enquanto espectador do filme senti uma enorme tentação de o reescrever. Talvez isso tenha subjectivado ainda mais aquilo que escrevi. No entanto, mantenho a minha posição de que o filme não é, pelo menos para mim, tão bom quanto as obras anteriores do realizador, o que é pena porque tinha o potencial de ser o melhor de todos os seus filmes. Como já disse, vejamos o que o futuro reserva para Shyamalan - pode parecer contraditório com o que escrevi aqui, mas acho que o realizador ainda tem para nos dar muitos e (muito) bons filmes!

Anónimo disse...

´já tinha visto esse filme 2 vezes, mas agora preciso fazer um comentário "platônico" prá aula de filosofia, tendo em vista que ele foi colocado no contexto de "mito da caverna" de platão... alguém pode me ajudar?

obrigada...

Unknown disse...

so gostaria de saber
porque o governo restringiu o espaço aerio
ficou no ar , e que floresta é esta que é preservada e nenhum ambientalisa vai analisar ver que dizer que é só fechar o muro e deu.
e o governo sabe ???
foi isso e outras coisas que eu nao entendi...

Anónimo disse...

Caso não tenha percebido, a empresa que cuida da reserva (é possível ver o nome no carro do policial) é a empresa que o bisavô de Yvi (que, cega, não consegue descobrir) criou.