segunda-feira, julho 23, 2007

À Prova de Morte - A Apologia do Chunga



Muita tinta tem corrido nos últimos tempos acerca do novo filme de Quentin Taratino. No programa original, “À Prova de Morte” é a segunda parte de um projecto do realizador de Pulp Fiction em colaboração com o seu amigo Robert Rodriguez (“El Mariachi”, “Sin City – A Cidade do Pecado”) que pretende reviver as velhas sessões de “Grindhouse” – ou seja, de uma dupla-sessão de filmes de série B/Z MUITO maus, feitos de encomenda para essas sessões, com valores de produção ridículos, uma inépcia técnica por vezes desconcertante, argumentos onde a coerência nunca foi um factor relevante, uma exploração de violência e sexo absolutamente gratuita, etc. Por outras palavras, de um cinema assumida e orgulhosamente chunga, de um cinema que dá prazer ver pelo mau que é e cujas projecções deixaram, na memória dos cinéfilos que a elas puderam assistir antes da sua extinção durante a década de 80, uma imensa nostalgia por momentos em que o público vibrava com o que via no grande ecrã ao ponto de gritar em voz alta com os personagens!

É simultaneamente o universo estético deste cinema-chunga e o espírito das sessões descritas atrás que o filme “Grindhouse” pretende recriar. Mas se os espectadores europeus vão poder desfrutar do factor de homenagem, já o segundo dos objectivos está algo comprometido graças ao facto das duas partes terem sido divididas em “longas-metragens independentes” com datas de estreia distintas e “novas” cenas que o público americano não pôde ver devido a constrangimentos de tempo a que o sistema de exibição obriga. Se o fracasso nas bilheteiras norte-americanas da versão “dois-em-um” teve ou não a ver com a decisão de lançar as obras separadamente em solo europeu é uma incógnita pouco relevante – mais vale apreciar o filme tal-e-qual nos surge agora e esperar que a edição em DVD nos permita ver a dupla-sessão tal como ela foi projectada nos ecrãs americanos.

E, sejamos directos, há mesmo muito para apreciar naquilo que podemos ver neste “À Prova de Morte”. Quem espera ir ver uma reflexão profunda sobre a condição humana pode muito bem deixar-se ficar pelo átrio do cinema – a homenagem à leveza dos originais Grindhouse é plenamente conseguida neste Slasher que, nas palavras do realizador, substitui a faca do assassino por um carro “à prova de morte”, com a imagem da película intencionalmente degradada (a cópia está cheia de riscos, cortes abruptos dentro do mesmo plano, o som falha aqui e ali...), um raccord entre planos que é pura mentira e um fan-service abundante das várias personagens femininas (embora sem chegar aos níveis dos exploitation originais), indo beber, pelo caminho, inspiração ao universo cinéfilo do autor, com referências a gente do cinema tão diferente como Roger Corman, Russ Meyer, Alfred Hitchock, Brian de Palma, Ennio Morricone, Bernard Herrmann...



O arranque da história tem a simplicidade do Capuchinho Vermelho: um grupo de raparigas sexualmente activas vai de carro passar uns dias a uma casa de férias e, no caminho, deparam-se com um louco que só as quer matar. A estrutura básica de um Slasher, portanto. Contudo, e apesar de toda a aparente superficialidade do projecto, quem procurar com cuidado poderá encontrar uma reflexão algo amarga sobre o estado do cinema popular actual. Isto está patente, por um lado, na faceta desiludida e amarga do perverso Stuntman Mike (Kurt Russel, absolutamente brilhante e finalmente de volta aos papéis de badass que John Carpenter sempre foi exímio em lhe escrever), um duplo da velha guarda que os gráficos de computador (CGI) tornaram dispensável, um “homem do passado” e de um universo ficcional de que a grande parte da juventude nunca ouviu falar e pouco interesse tem em conhecer. O gosto pelo artesanal existe tanto no assassino como no próprio realizador, e a confirmá-lo existe o facto de todas as cenas violentas terem sido encenadas com duplos e sem o auxílio de CGI.

É, no fundo, a tentativa de recuperação de um cinema eminentemente popular que não se armava em “entretenimento de luxo para toda a família”, não deixando de ser, paradoxalmente, talvez o filme mais experimental do realizador, aquele em que o autor mais se deixa seduzir pela manipulação das formas, dos planos (é o próprio Tarantino, aliás, que assina a direcção de fotografia e a operação de câmara), dos sons, da direcção de actores e, também, da escrita do argumento. Se a habitual mestria nos diálogos já se tornou uma espécie de dado-adquirido nos filmes de Tarantino, o que impressiona aqui é o modo como o autor brinca com as convenções da estrutura clássica de três actos, enchendo a narrativa de “momentos mortos” que só nos deixam conhecer melhor as personagens mas em nada fazem avançar a narrativa – um dos crimes capitais da dramaturgia clássica. E o estranho é que funciona! A prová-lo, veja-se a intensidade da passagem da primeira parte do filme para a segunda, numa homenagem escancarada às lições de escrita de argumento de “Psico”, e a eficácia do efeito de catarse da perseguição final, das mais emocionantes dos últimos anos, fazendo-nos lembrar as orquestradas por William Friedkin nos seus filmes de acção.



Esse prazer, o da experimentação, passa para o espectador com um encantador rejúbilo que raramente se vê nos dias de hoje. Mais genuinamente divertido do que qualquer blockbuster actual, “À Prova de Morte” é o verdadeiro filme de Verão e, há que dizê-lo, num mar de monstros politicamente correctos que só vêm apresentar fórmulas gastas e repetitivas, é tão bom ver uma obra tão mal comportada.

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