quarta-feira, setembro 01, 2004

"Spartan - O Rapto"


Scott (Val Kilmer), um agente das forças especiais norte-americanas, é destacado do seu actual posto de treinador de soldados debutantes para participar numa missão muito particular: resgatar a filha do presidente dos EUA, que foi raptada quando o seu guarda-costas não lhe estava a prestar atenção, sendo que o seu resgate tem que ser realizado o mais rápido possível pois, no fim de contas, as eleições estão à porta... A investigação que se segue, porém, vai revelar que o que está em jogo é muito diferente daquilo que se esperava.

A sinopse atrás apresentada poderia sugerir que "Spartan" se trata de um banalíssimo filme de acção saído das majors norte-americanas, pronto a ser visto e esquecido pelos espectadores de fim-de-semana como mais um blockbuster oco e vazio de conteúdos, mas cheio de explosões, tiros, perseguições de automóveis e mulheres de corpos esculturais. A trailer também dá essa sensação. Mas há um nome na ficha técnica que nos convida a olharmos com (bem) mais atenção: David Mamet.


É a pista certa para entrarmos no filme. Não é a primeira vez que o célebre dramaturgo/encenador e argumentista/realizador experimenta a sua mão no thriller (veja-se o hitchcockiano "House of Games - Jogo Fatal"), e se pensarmos que muitos dos deliciosos (e ácidos) diálogos de "Manobras na Casa Branca" de Barry Levinson são da sua autoria, não é de admirar que este seu regresso ao género surja temperado com uma dose bem forte de crítica política. De facto, "Spartan" não é só um thriller emocionante e extremamente bem construido - é, também, uma reflexão irónica sobre o actual clima político norte-americano, sobre a ilusão das aparências (um tema muito querido a Mamet), sobre a degeneração da família tradicional, sobre a manipulação política a e obediência cega imposta pela instituições militares aos seus soldados. Nesse sentido, a invocação da mitologia do rei Leónidas de Esparta (que enviava um só homem para atacar de surpresa os seus adversários em detrimento de mandar batalhões inteiros) na figura de Scott resulta tanto mais poderosa.

À semelhança de "Jogo Fatal", o argumento é construído como o acto de descascar uma cebola, expondo camada após camada e revelando, de cada vez, um novo e inesperado caminho para a história. A mestria de Mamet está na maneira como cria os "twists" com a maior das verosimilhanças, bem como no modo como brinca com as emoções dos espectadores com cada nova reviravolta. Joga sabiamente com algumas convenções do thriller e do filme de acção, não caindo em nenhuma das armadilhas que uma tal "mistura" poderia originar.


E, depois, há os diálogos. No seu livro "On Directing Film", Mamet expõe uma teoria acerca da narrativa cinematográfica que tem deixado mais do que uma pessoa ligeiramente baralhada: "Basicamente, o filme perfeito não tem diálogos. Deve-se sempre ter como objectivo fazer-se um filme mudo"* Estas afirmações podem parecer irónicas para quem já tenha ouvido as frases sonantes ditas pelas personagens de obras como "State & Main". No entanto, nesse mesmo parágrafo, Mamet também diz que "...se estamos a contar a história com as imagens, então os diálogos são a cobertura por cima do gelado". Assim o é em "Spartan". Porque se realmente os diálogos desempenham um papel crucial na composição das personagens e no avanço da narrativa, também é verdade que a sua eficácia é possível graças a uma découpage minuciosamente pensada, a uma direcção de fotografia impecável, a uma montagem precisa e a uma música de fundo que estabelece perfeitamente o ambiente.


Há também que referir o soberbo trabalho dos actores. Val Kilmer tem aqui aquele que é muito provavelmente o melhor dos papéis que desempenhou nos últimos anos, sendo que Derek Luke, Tia Texada e Kristen Bell têm todos composições acima da média. Lamenta-se, simplesmente, que a personagem de William H. Macy (bem mais importante do que parece) não seja mais explorada e, por consequência, não tenha mais tempo no ecrã. A interpretação de Macy é correcta a todos os níveis, e chega mesmo a proporcionar-nos alguns momentos excelentes, mas como contraponto à personagem de Scott, acaba por não ter o desenvolvimento que se desejaria.

Não que isso prejudique tremendamente o resto do filme. Continua a ser um dos títulos mais interessantes actualmente em sala e um thriller notável.

Spartan - O Rapto (Spartan)
Thriller, EUA, 2004

Argumento e realização: David Mamet
Elenco: Val Kilmer, Tia Texada, Derek Luke, Kristen Bell, William H. Macy.
Produção: David Bergstein & Moshe Diamant
Dir. de fotografia: Juan Ruiz Anchía
Música: Mark Isham
Montagem: Barbara Tulliver
Som: Felipe Borrero


* A tradução livre é da minha autoria, visto que o livro "On Directing Film" nunca foi publicado em Portugal. Para quem a quiser arranjar (vale bem a pena), a edição em língua inglesa da Penguin Books ainda está disponível no site da Amazon britânica.

1 comentário:

gonn1000 disse...

Sim, não desmerece uma espreitadela, mas não fiquei assim tão convencido...é um Mamet demasiado convencional...

O blog está interessante.

http://gonn1000.blogspot.com