terça-feira, julho 06, 2004

"La Jetée" - Quando o Experimentalismo é uma Arte



This is the story of a man, marked by an image from his childhood. The violent scene that upsets him, and whose meaning he was to grasp only years later, happened on the main jetty at Orly, the Paris airport, sometime before the outbreak of World War III. (...) Later, he knew he had seen a man die. (...) And sometime after came the destruction of Paris.

Com estas palavras inicia-se a narração de "La Jetée", feita em off enquanto várias fotografias vão sucessivamente dando lugar a outras. A Terceira Guerra Mundial, contam-nos, arrasou Paris e condenou muitos dos seus habitantes a viverem nos subterrâneos de Chaillot. Os sobreviventes dividem-se entre aqueles que acreditam terem saído vitoriosos e aqueles que se deixaram ser aprisionados por esta nova ordem. São estes últimos que são submetidos a estranhas experiências pela parte dos cientistas que tentam encontrar alguma maneira de remediar os estragos causados ao planeta. A viagem no tempo, a procura de alguma solução no Passado ou no Futuro, torna-se uma possibilidade. É aqui que surge o Homem descrito no texto inicial: o conhecimento da sua obsessão por uma imagem do seu passado leva os cientistas a escolherem-no como cobaia para tentarem enviá-lo algures no tempo em busca de uma solução. Mas encontrará? Quando a misteriosa Mulher de que tão bem se lembra das suas memórias do aeroporto de Orly lhe surge à frente dos olhos, a fronteira entre o passado, o presente e o futuro parece deixar de existir.

Corria o ano de 1962, a Nouvelle Vague francesa já dava os seus primeiros passos mostrando ao mundo que o cinema podia ir muito mais além do que aquilo que os apoiantes do "cinéma du papa" nos ofereciam. Era a altura de experimentar novas ideias, novas maneiras de construir os filmes. Embora não fosse um dos membros do movimento, Chris Marker ficou célebre por, nesse ano, ter estreado uma curta-metragem que desafiava todas as convenções até aí estabelecidas: um filme de ficção científica contado (quase) totalmente pela sucessão de imagens estáticas/fotografias, usando a voz-off como motor principal da narrativa. Vinte e nove minutos após o arranque do projector, história tinha sido feita.



"La Jetée" é um filme deslumbrante. Se a ideia pode à partida parecer pouco apelativa e potencialmente pedante, o resultado supera todas as expectativas. Talvez a maior proeza do filme seja a sua inigualável capacidade de ser simultaneamente experimental e extremamente apelativo. Embora Marker seja um experimentalista nato e opte por contar a sua história de uma maneira muito pouco convencional, nunca, nem num só fotograma, o filme se torna aborrecido. Nem nunca esta vontade de contar a história por imagens estáticas soa pretenciosa. Isto porque Marker não olha com desdém para o espectador nem está interessado em simplesmente fazer uma "manta de retalhos" de imagens e músicas bonitas. Aqui, a forma não deturpa aquilo é talvez o mais importante: a narrativa. Estamos perante uma história de ficção científica intimista magnificamente construída e soberbamente contada, digna de um romance de Phillip K. Dick, e que espanta tanto mais que quebra com a maior eloquência do universo um dos grandes "dogmas" da escrita de argumento: o uso alargado da voz-off. Aqui, ela é não só essencial como também tão expressiva quanto os actores que surgem diante dos nossos olhos. E não deixa de ser incrível que um filme composto inteiramente por planos estáticos consiga ter um ritmo de tal forma fora do comum que os vinte e nove minutos que o compõem passam a voar. Isto é sobretudo devido a uma montagem prodigiosa que, mais do que simplesmente limitar-se a alinhar belíssimas fotografias, fusiona o som e a imagem de uma maneira que nos permite alcançar estados emocionais de uma intensidade tremenda. É o caso da cena da visita ao museu, onde a realização atinge momentos de puro lírismo graças à riqueza da imagem (em todos os aspectos: enquadramento, iluminação, composição, mise-en-scène, etc), à fantástica expressividade dos actores e à belíssima música de Duncan. É dos mais belos momentos cinematográficos que o formato da curta-metragem já nos deu. Tal como "La Jetée" é certamente das mais belas curtas-metragens que já vi,muito graças, de novo, às interpretações notáveis de todos os actores (não se atrevam a chamar-lhes foto-modelos ou foto-actores!), à excepcional banda-sonora (não só a música como toda a mistura de sons, essencial numa obra deste teor) e, claro, à soberba realização de Chris Marker.

Algo para deixar para o futuro



A história de Marker deixou marcas em todo o fã de sci-fi que teve o prazer de a ver, e não é de admirar que tenha inspirado vários realizadores e argumentistas, mesmo que o tema das viagens no tempo não fosse novo (já a "Máquina do Tempo" de H.G.Wells tinha sido adaptada ao grande ecrã dois anos antes). "12 Macacos" de Terry Gilliam é o exemplo mais citado e mais directo, até porque se assume abertamente como um "remake" da curta, mas quem viu Jin-Roh de Hiroyuki Okiura decerto notará o quão "La Jetée" influenciou esse filme: a cena do museu é homenageada quase à la lettre naquele que também é um dos momentos mais belos do filme de animação japonesa. Ou não fosse Mamoru Oshii (argumentista do filme em questão) um grande admirador do realizador francês. As suas temáticas políticas, as questões éticas relacionadas com a viagem do tempo, as consequências das nossas obsessões, são problemas que soam hoje tão preocupantes como na década dos Beatles. É sinal de que a obra conseguiu passar o teste do tempo e, sobretudo, marcar novas gerações de artistas. Não será essa a maior das recompensas que o realizador poderia ter?

Há quem diga que o cinema experimental é, por natureza, "ensimesmado", de difícil acesso e somente para o gosto de minorias ou "públicos restritos" (eufemismo politicamente correcto de "elites intelectuais"). É esta ideia de cinema experimental, aliás, que parece ainda pairar na mente de muitos realizadores portugueses. Talvez fosse bom convidá-los a (re)ver "La Jetée", mas desta vez com um bloco de notas à mão para anotar as possíveis razões por que o filme funciona tão bem sendo tão distintamente exótico.

La Jetée. Ficção Científica/Drama. 1962, França
Realizador: Chris Marker
Elenco: Jean Négroni (narrador), Davos Hanich (O Homem), Hélène Chatelain (A Mulher), Jacques Ledoux (O Cientista), André Heinrich, Jacques Branchu, Pierre Joffroy, Étienne Becker, Philbert von Lifchitz, Ligia Branice, Janine Klein , William Klein, Germano Faccetti
Produtor: Anatole Dauman
Dir. de Fotografia: Jean Chiabaut & Chris Marker
Música: Trevor Duncan
Montagem: Jean Ravel
Montagem de som e misturas: Antoine Bonfati
P/B, 29 min.

Disponibilidade

Existem duas edições em DVD de "La Jetée" que podem ser adquiridas na net. Uma delas é uma box editada na França que inclui tanto esta curta-metragem como a longa "Sans Soleil", também de Chris Marker. Contém tanto a versão francesa como a inglesa, mas o preço é algo elevado. Uma versão ligeiramente diferente desta box existe em edição britânica da Warner Studios, mas a faixa de audio francesa parece ter desaparecido misteriosamente. Outra alternativa é adquirir a colectânea de curtas-metragens "Short 2 - Dreams" onde a obra de Marker está incluída e que (de acordo com a Amazon) até parece ter uma faixa de comentários do realizador (?) que deverá ser interessante. No entanto, só a versão falada em inglês está disponível neste disco.

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