segunda-feira, agosto 09, 2004

Dossier: A Questão Michael Moore (Parte I de VI)


O CineArte inaugura a sua secção de dossiers dedicados à obra de cineastas que, por uma razão ou por outra(s), merecem um destaque acrescido. Tentar-se-á, com estes dossiers, dar a conhecer a (quase) totalidade da obra de um determinado autor, dando a hipótese ao leitor de partir dos textos para um ou mais filmes. E começamos com uma escolha polémica – Michael Moore, o homem que tem como missão actual assegurar que George W. Bush não volte a ser eleito presidente dos Estados Unidos da América neste próximo Novembro.

Optou-se, neste dossier, por abordar unicamente a obra para cinema do documentarista oriundo de Flint, já que seria impossível (em termos temporais e financeiros...) escrever com a mesma consideração sobre os seus livros e sobre os seus trabalhos para a televisão.

Muito tem sido escrito sobre os filmes. Infelizmente, muito do que de negativo se afirmou sobre o seu último filme, “Fahrenheit 9/11”, tem nascido, um pouco à semelhança do que já acontecera com as suas obras anteriores, não só de diversas alegações de “manipulação dos factos” como, e isto muito mais gravemente, de um profundo desconhecimento do que é um documentário cinematográfico. Daí que, antes de continuar com este texto, convenha expor uma definição:

O documentário é um género que pressupõe uma visão subjectiva da realidade pela parte do seu autor, um ponto de vista nítido e sincero sobre uma determinada situação da actualidade. Não é uma reportagem e nem sequer se rege pelas leis do jornalismo (a primeira das quais, a objectividade no tratamento da informação - que mesmo no jornalismo televisivo de hoje em dia é mais que questionável...). É uma obra de arte, tão subjectiva como a mais honesta das ficções ou o mais rabiscado dos quadros.


Mas não vão por estas palavras. Michael Rabiger, autor do livro “Directing the Documentary” (1992, Focal Press) que é considerado uma leitura de referência nas escolas de cinema que leccionam o género do documentário, diz na sua obra lapidar que um filme documentário deve ser “ou um ensaio controlado e premeditado ou algo lírico e impressionista. Pode articular o seu significado principalmente através de palavras, imagens ou comportamento humano (...) O filme documentário reflecte um fascínio e um profundo respeito pela actualidade. É o exacto oposto do ‘escape entertainment’, estando comprometido com a riqueza e ambiguidade da vida tal como ela é”.

Nos seus documentários, Moore assume frontalmente a sua ideologia de esquerda. Embora diga que os seus filmes estão construídos de modo a entreter o espectador comum que pagou 10 dólares pelo bilhete de entrada, o certo é que estes oferecem muito mais do que umas quantas piadas dispersas por noventa ou cento e vinte minutos. Moore é um retratista da população da chamada “small-town America”, aquela que não tem qualquer expressão nos média ou nas artes norte-americanas, que só surge nos noticiários quando é vítima dos crimes de mão armada. As situações que aborda, como o crescente desemprego na classe média e as fraudes corporativas que passam incólumes, mostram uma nação de contrastes, que gosta de passar a imagem de que é o país mais rico do mundo e a “terra das oportunidades” mesmo que essa riqueza esteja longe de ser distribuída e que as oportunidades sejam só para alguns. São reflexões sobre “o Sonho Americano” feitas por alguém que soube ver nele o mais podre e, ironicamente, ser dos poucos privilegiados a vivê-lo.

Goste-se ou não, o certo é que Moore conseguiu uma proeza inegável, que foi atrair milhões de espectadores em todo o mundo para um género cinematográfico (o documentário) que geralmente tem grandes dificuldades em impor-se comercialmente perante as obras de ficção, isto quando consegue sequer chegar às salas de cinema. Os seus documentários geraram mais discussão e reflexão sobre a política interna e externa dos EUA do que muitos livros ou “reportagens objectivas” feitas para a imprensa escrita ou televisiva. E, no fim do dia, não será essa uma das mais nobres funções do cinema (e do cinema documental em particular), a de nos fazer discutir e reflectir sobre a nossa actualidade?


E goste-se ou não, é mais que certo que Michael Moore não ficará por aqui. A comprová-lo está o seu já anunciado próximo projecto de documentário “Sicko”, um filme que aborda o sistema de saúde norte-americano. Conhecendo a obra anterior do realizador, não é de esperar propriamente os maiores elogios pela parte do documentarista de Flint.

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