segunda-feira, agosto 09, 2004

Dossier: A Questão Michael Moore - Fahrenheit 9/11 (parte II de VI)

"Fahrenheit 9/11 - A Temperatura a que Arde a Liberdade"


“Fahrenheit 9/11” começa com o mesmo ponto de partida do livro “Stupid White Men”: regressamos a 2000, no dia das eleições para a Presidência dos EUA. Al Gore é anunciado como sendo presidente mas, pouco tempo depois, é a FOX quem revela que a contagem dos votos, na realidade, dá a vantagem a Bush. Os restantes média apressam-se a dar-lhe razão. Gore já não é presidente, e Bush entra na Casa Branca à chuva de ovos e tomates de inúmeros manifestantes que contestam a sua eleição. Terá sido tudo um sonho? Um pesadelo? Ou simplesmente a realidade?

O mais recente filme de Michael Moore assume-se desde logo como sendo “Anti-Bush”. Quem vai vê-lo não deve esperar encontrar aqui uma visão jornalistica do tema, mas sim uma tese sobre o fracasso berrante de uma administração que teve como lema o “conservadorismo compreensivo”. É talvez o filme mais criticado de Moore, mesmo entre os seus habituais admiradores. É também aquele em que o realizador aparece menos no ecrã, sendo que a maior parte daquilo que vemos são imagens de arquivo montadas sobre uma ordem específica e “narradas” pela voz de Moore.


Manipulação? Mas o que é o cinema senão a arte da manipulação dos sons e das imagens? Basta colocar um plano ao lado de outro para existir manipulação, por muito pequena que seja. Quanto à alegada manipulação de factos, é o próprio Moore que desafia quem encontrar incoerências para as denunciar publicamente de modo a ganhar uma recompensa choruda. De resto, os elementos factuais ditos “falsos” por muita gente têm sido prontamente desmentidos no site “The Facts in 9/11”.

É filme para Americano ver? Provavelmente. É, afinal, na população norte-americana que Moore espera que o seu documentário faça o maior efeito. Propaganda? O Grande Dicionário da Língua Portuguesa do Círculo de Leitores define «propaganda» como sendo “Acção de propagar ideias, princípios, conhecimentos, teorias, divulgação, evangelização Associação encarregada de vulgarizar certas doutrinas”. Estranhamente, não vejo no filme a apologia de uma ideologia específica, nem a defesa de um partido em particular (Moore também nunca foi generoso com os democratas – vide “The Big One”) nem sequer uma divisão maniqueista do mundo em “bons” e “maus” – vejo, isso sim, uma crítica dura e impiedosa a uma administação e ao seu presidente. Crítica essa com que podemos concordar ou discordar (o filme NUNCA passa a ideia de que quem não concorda com as teorias expressas nele é estúpido!). De resto, que não haja dúvidas: o filme respeita todas as regras do documentário.*


Mas pondo estas questões de propaganda de parte, podiamos perguntar-nos se o filme tem ou não algum valor artistico, independetemente da mensagem que quer transmitir. Parece-me que, neste ponto, é que muita da crítica existente tem sido particularmente injusta, pois “Fahrenheit 9/11” consegue mesmo ser um belíssimo documenário. Desde a soberba sequência de créditos (onde vemos os membros principais da administração Bush a serem maquilhados como se fossem actores a prepararem-se para o início da peça), passando pela parte em que Moore tenta (sem sucesso) convencer membros do congresso a alistarem os seus filhos para a guerra no Iraque até ao plano final em que Bush se vê incapaz de dizer o velho ditado “Fool me once, shame on you; fool me twice, shame on me” que o estilo é provocador, extremamente crítico mas sempre lúcido e coerente. E francamente muito bem construído.

O filme consegue mesmo momentos belíssimos de montagem – quem o acusa de oportunista é porque deveria estar distraído durante a cena em que se “mostra” o embate nas Torres Gémeas dos aviões unicamente através do som e, posteriormente, de imagens de várias pessoas e olhar para off, onde a desgraça ocorreu. Cineastas menos habilidosos certamente não teriam resisitido à tentação de ir buscar as mais que revistas imagens dos choques – Moore escolhe a decência de nos poupar de tais obscenidades. Ninguém parece ter reparado nisso.


Há alturas onde Moore quase que pisa o risco – quando a mãe de um soldado morto no Iraque lê a última carta enviada pelo seu filho, perguntamo-nos por vezes se não estamos a entrar no campo do voyeurismo. A posteriori, parece-me que a escolha de Moore de colocar essa cena na íntegra faz todo o sentido, já que era necessário mostrar as consequências da guerra no Iraque, por muito dolorosas que fossem. Mas não esqueçamos outros momentos memoráveis/perturbantes do filme - o impasse de Bush ao ser informado de que o país está a ser atacado enquanto lia um livro infantil a um grupo de crianças (a voz-off de Moore, ao contrário do que já foi escrito por aí, não nos diz o que o presidente estava a pensar, apenas faz suposições baseadas nas suas expressões faciais...); a realidade desoladora da vida dos jovens "voluntários" que participaram na guerra do Iraque, bem como os curiosos métodos de recrutamento usados pelas instituições militares dos EUA para os convencer a alistar-se; o choque que é saber que a maioria dos congressistas que aprovaram o "Patriot Act" nem sequer o tinham lido; etc. Nestas sequências, como é típico na obra de Moore, o riso (irónico) vai de mão dada com a reflexão.

Mereceu a Palma d’Ouro? Na minha sincera opinião, sim, mereceu. Controvérsia... Que controvérsia?

Fahrenheit 9/11
Documentário, 2004, EUA.

Argumento e realização: Michael Moore
Produção: Michael Moore, Kathleen Glynn & Jim Czarnecki.
Produtores executivos: Harvey Weinstein & Bob Weinstein.
Dir. de Fotografia: Mike Desjarlais; Imagens adicionais: Kirsten Johnson & William Rexer.
Música: Jeff Gibs & Bob Golden.
Montagem:Kurt Engfehr, Todd Woody Richman & Chris Seward.

Disponibilidade:

O filme está actualmente em exibição nos cinemas portugueses.

*Já que falamos de propaganda, lembremos um pequeno episódio do passado. Howard Hawks filmou, logo a seguir ao ataque de Pearl Harbour, um filme de ficção chamado “Air Force - Águias Americanas”. Nele, os japoneses são retratados como sendo monstros - quando os seus aviões são abatidos por caças americanos o ambiente é de festa, e há até uma tentativa de comic-relief personificada num cachorrinho de nome “Tripoli” que, muito “sabiamente”, só ladra quando lhe dizem nomes japoneses como “Moto”. É propaganda no seu estado mais puro – há bons (os americanos) e maus (os japoneses), os maus são monstros imperdoáveis e desuhamanos, os bons são modelos de virtudes (e a única personagem que começa por não o ser acaba por se redimir lá para o fim) e, claro, o bem ganha sempre. Mesmo que essa vitória do bem consista em bombardear Tóquio... No entanto, é difícil encontrar hoje quem ouse dizer mal do filme e de chamar de faccioso a Howard Hawks. Afinal, o homem é (muito justamente) o génio por detrás de obras-primas como “Rio Bravo” ou “Os Homens Preferem as Loiras”. Pelo contrário, elogia-se a (inegável) qualidade técnica do filme, que é formidável sobretudo tendo em conta o ano em que foi produzido e a rapidez em que foi feito. E além disso, ninguém esquece que foram as cenas de combate de caças deste filme que influenciaram George Lucas na concepção dos brilhantes combates especiais entre Tie-Fighters e StormTroopers no seu mítico “A Guerra das Estrelas”. Do lado de propaganda já ninguém parece querer saber. O nome de Hawks é superior a isso tudo.

3 comentários:

Francisco disse...

Os créditos iniciais e a sequência das torres são do mais interessante que o filme oferece. E o resto? Moore apresenta os factos (como o sempre fez) comentando-os por cima com o mesmo nivel dos comentários da Manuela Moura Guedes. Se por um lado contem-se (e muito bem) ao não mostrar as torres a serem destruídas, por outro caí num mundanismo irritante de mostrar imagens chocantes com a mesma partitura chata de-puxar-à-lágrima. É este o Moore que eu conhecia?? Nada. É desinteressante, exageradamente maniqueísta, chato.
Documentário em todo parecido a qualquer outra reportagem da TVI, só faltava mesmo a musica do Yann Tiersin para que isto fosse o rei dos clichès futeis.

Anónimo disse...

Coméntário ao comentário:
Concordo com o que foi criticado sobre a Omnipresença do Moore no documentário o que o torna faccioso e o fundo mais um político a fazer propaganda, mas,
há que reconhecer a qualidade cinematográfica e artistica ( de uma maneira geral) de muitas sequências do filme. Axo que o estilo documentário à M. Moore se vê bem na sequência da entrevista ao soldados americanos em que eles mostram a música que ouvem como banda sonora para atacar os Iraquianos ( isto é jornalismo e documental, se se ficasse por aqui era isento e informativo), de seguida ele mostra imagens da guerra, de bombas, de casas a arder, de Iraquianos a gritar, desfeitos e em sofrimento, com a música dos soldados como banda sonora( para além da ironia e sátira obvias, o que até se pode considerar positivo, na medida em que o jornalismo e documentário não tem de ser todo igual, o que irrita neste estilo «Mooriano» de documentar é quando sentimos que ele força o ponto de vista dele e apenas mostra o lado dele como Verdade lógica e inegável. Como se todos fossem estúpidos e ele o unico conhecedor e poclamdor dessa Verdade. Ora, este é o estilo politico e religioso.
Mas sinceramente, não me parece que ele merece-se a Palma DÓuro, até porque todos nós sabemos que ele só ganhou porque o Tarantino é Americano e Anti- Bush, e os Patrões do Tarantino estavam na Produção e Distribuição do filme. Para alem disso, os Franceses não iam perder a oportunidade de dar esta chapada nacar aos Americanos. Mas pronto, já sabemos como é: «Business are business»....

Anónimo disse...

Coméntário ao comentário:
Concordo com o que foi criticado sobre a Omnipresença do Moore no documentário o que o torna faccioso e o fundo mais um político a fazer propaganda, mas,
há que reconhecer a qualidade cinematográfica e artistica ( de uma maneira geral) de muitas sequências do filme. Axo que o estilo documentário à M. Moore se vê bem na sequência da entrevista ao soldados americanos em que eles mostram a música que ouvem como banda sonora para atacar os Iraquianos ( isto é jornalismo e documental, se se ficasse por aqui era isento e informativo), de seguida ele mostra imagens da guerra, de bombas, de casas a arder, de Iraquianos a gritar, desfeitos e em sofrimento, com a música dos soldados como banda sonora( para além da ironia e sátira obvias, o que até se pode considerar positivo, na medida em que o jornalismo e documentário não tem de ser todo igual, o que irrita neste estilo «Mooriano» de documentar é quando sentimos que ele força o ponto de vista dele e apenas mostra o lado dele como Verdade lógica e inegável. Como se todos fossem estúpidos e ele o unico conhecedor e poclamdor dessa Verdade. Ora, este é o estilo politico e religioso.
Mas sinceramente, não me parece que ele merece-se a Palma DÓuro, até porque todos nós sabemos que ele só ganhou porque o Tarantino é Americano e Anti- Bush, e os Patrões do Tarantino estavam na Produção e Distribuição do filme. Para alem disso, os Franceses não iam perder a oportunidade de dar esta chapada nacar aos Americanos. Mas pronto, já sabemos como é: «Business are business»....

Sam"Shandy"Horta