Em 1987, Roger Smith, chairman da General Motors, decidiu, em pleno apogeu económico da empresa construtora de automóveis, fechar a fábrica localizada em Flint, no Michigan. Desse encerramento resultou o despedimento de mais de 40.000 empregados e o início do caos social na pequena cidade. Michael Moore, habitante de Flint que na altura se encontrava desempregado, decidiu não ficar passivo perante esta situação e, após juntar algum dinheiro ao organizar jogos comunitários de bingo na sua casa (!), pegou numa pequena equipa de filmagens que conhecera dos seus tempos de jornalista e partiu numa missão muito peculiar: fazer um documentário onde se mostrasse as consequências desastrosas do encerramento injustificado da fábrica e, ao mesmo tempo, contactar directamente com Roger Smith e convidá-lo a visitar Flint para lhe mostrar o impacto da sua decisão na vida dos habitantes da sua terra natal. Nunca conseguiu falar com Roger. Mas fez um dos documentários mais marcantes dos anos 80.
Quando estreou em 1989, “Roger & Eu” causou um burburinho considerável nos EUA. Pela primeira vez em muito tempo, a “América dos pequeninos” via no grande ecrã um dos seus a fazer frente ao patrão de uma grande corporação, munido unicamente de uma câmara e um sentido de humor ácido, e a conseguir dar uma luta impressionante! Embora o próprio poster não deixe quaisquer dúvidas de que Moore nunca irá encontrar-se com Roger, o que cativa o espectador não é (só) as tentativas frustradas de Moore de chegar ao último andar da sede da GM para falar com o poderoso chefão – é que entre esses momentos, Moore faz um fresco da situação na sua cidade natal que é das mais sinceras e perturbadoras viagens à América do interior jamais registadas em película.
Somos confrontados com o contraste da despreocupação dos ricos (que organizam festas onde alguns desempregados fazem de estátuas humanas, não fazendo sequer ideia de que Flint está a passar por uma crise social) e o brutal despejo de várias famílias das suas casas (uma das quais em pleno dia de Natal...) pela parte de um Xerife-adjunto que diz honestamente que só está a fazer o seu trabalho. Há também a senhora que combate a pobreza vendendo coelhinhos como “animais de estimação ou como comida”, não tendo qualquer dificuldade em abater e esfolar os ditos animais em frente à câmara naquela que foi (ridiculamente) a cena mais contestada de todo o filme. Pelo caminho, também fazemos uma viagem ao passado de Flint, que em tempos foi uma dos maiores representantes do “Sonho Americano” e, na altura em que o documentário foi rodado, foi eleita pela “Fortune Magazine” como a mais pobre cidade dos EUA.
O que mais toca é a evidente identificação que Moore tem com as pessoas da sua cidade natal. “Roger & Eu” pode ter inúmeros momentos que nos fazem rir, mas é sempre um riso amargo. Trata-se de um documentário pessoalíssimo (não é por acaso que o filme, até no título, está narrado na primeira pessoa do singular) sobre uma situação extremamente dolorosa para o seu autor, e o humor apresentado é sobretudo irónico e reflexivo. Não sabemos por vezes se havemos de rir com o ridículo que é assistir à inauguração em Flint de uma prisão onde as pessoas são convidadas “a passar uma noite dentro” para comemorar a ocasião ou a ficar imensamente furiosos com o facto das coisas terem chegado a um ponto onde situações como esta não pertencem ao campo do surreal!
No fim do dia, Moore pode não ter conseguido fazer com que Roger Smith assistisse pessoalmente ao estado das coisas em Flint, nem ter feito com que os desempregados da sua cidade recuperassem os seus empregos. Mas conseguiu dar-lhes voz e fazer com que os espectadores do resto do mundo conhecessem e reflectissem sobre a sua situação. E essa é a maior vitória do filme.
Roger e Eu (Roger and Me)
Documentário, 1989, EUA.
Argumento, produção e realização: Michael Moore
Co-Produtora: Kathleen Glynn
Operador de Câmara: Christopher Beaver, John Prusak, Kevin Rafferty e Bruce Schermer.
Montagem: Wendey Stanzler & Jennifer Beman
Cor, 87 minutos.
Disponibilidade:
Tragicamente, a primeira obra de Moore permanece inédita em solo português, isto tanto em DVD como em VHS, embora já tenha, inclusive, recebido honras de passar na televisão há vários anos (na SIC, se a memória não me falha...), muito antes de Michael Moore ser MICHAEL MOORE.
No entanto, não é difícil encontrar nas FNACs nacionais o DVD francês da Warner Brothers (“Roger et Moi”) que, como mais valia para quem não for grande conhecedor da língua de Molière, vem abastecido de legendas em Inglês, Alemão, Sueco, Norueguês, Dinamarquês, Finlandês e... obviamente, Francês! Nada de legendas em português, mas sempre é melhor que nada! Ah, e também há no disco umas dobragens em Francês e Alemão, mas todos sabemos que a versão original é aquela que vamos querer ouvir!
É uma edição praticamente desprovida de extras, mas felizmente temos, para nos consolar, a trailer original para as salas de cinema e (mais relevantemente) um comentário de áudio do próprio Michael Moore que deverá ser do interesse de todos que queiram saber mais sobre a concepção do filme.
Existem também as versões norte-americanas e inglesas deste disco, sendo a primeira igual à francesa em termos de conteúdos (mas com menos legendas por onde escolher) e a segunda bastante inferior, já que contém o filme e... nada mais!
É só uma pena que em nenhuma destas edições se tenha incluído também a curta-metragem documental “Pets or Meat: The Return to Flint”, um especial de 24 minutos feito para a TV, documentando o que acontecera aos habitantes de Flint três anos depois da conclusão de “Roger e Eu”.
4 comentários:
O jornal Nacional está fazendo reportagens sobre a atual crise financeira... Mas está misturando as "estações": mostra a cidade de Flint como se o seu abandono fosse causa atual, ignorando que a decadência aconteceu a partir do fechamento da fábrica da General Motors em 1987.
Eu gostei do documentário desde que eu o assisti no SBT!!! Claro que foi de madrugada, numa época que este canal passava uma seleção de filmes repetidos para quem tinha insônia. Em certos canais, programação de qualidade passa só antes das 6 da matina.
Hoje consta como fora de catálogo, mas eu o encontrei perdido no meio de um monte de DVDs numa grande rede de supermercados.
Foi pura sorte para acrescentar em minha coleção.
Baixar o Documentário Roger e Eu - http://fwd4.me/0ALT
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