A vida de Andrei (Vladimir Garine) e Ivan (Ivan Dobronravov), dois irmãos em fase de início de adolescência, é completamente abalada quando o seu pai (Konstantin Lavronenko) aparece em casa após uma ausência inexplicada de 12 anos. Tudo o que sabem acerca dele é que é (ou foi) piloto, e a única memória que retêm deste estranho homem é uma fotografia tirada há mais de dez anos. A aparente frieza que o pai mantém para com os seus filhos não parece oferecer grandes esclarecimentos. No entanto, este regresso não será um mero retorno a casa: Andrei e Ivan partem com o seu pai numa viagem com o suposto objectivo de recuperarem o tempo perdido. No entanto, as "férias" que terão com o pai serão muito diferentes do que alguma vez poderiam imaginar...
"O Regresso" chegou a Portugal transportado numa verdadeira avalanche de elogios onde não faltavam citações a praticamente todos os grandes cineastas russos do passado (sobretudo Tarkovski e Kulechov), e carregando consigo o prestígio do Leão de Ouro do Festival de Veneza do ano passado. Ainda assim, as poucas imagens que se vêem por aí poderiam sugerir que se tratava de um filme essencialmente contemplativo, de grande beleza visual mas de um possível vazio narrativo. Felizmente, está muito longe de ser o caso. "O Regresso" é uma das estreias mais estimulantes deste Verão e, para variar, dá mesmo para acreditar na hype de que se trata de um dos melhores filmes Russos das últimas décadas!
Se é verdade que a qualidade do notável trabalho do director de fotografia Mikhail Krichman salta à vista desde os primeiros planos do filme, não é (apesar de tudo) nela que encontraremos os maiores prazeres. A primeira sequência, onde um grupo de rapazes testa a sua "virilidade" numa competição privada de mergulho e onde o pequeno Ivan é gozado por não querer saltar para a água gelada, imediatamente estabelece o tom e lança a temática que o súbito retorno do pai só vem confirmar e aprofundar: trata-se de um filme sobre o crescimento no masculino e, também, sobre um conflito entre duas gerações de homens muito diferentes. Não é por acaso que as únicas mulheres neste filme, a mãe (figura essencialmente protectora, como podemos ver no início) e a avó (completamente apagada em segundo plano) estejam ausentes no resto da história, e nem a empregada do restaurante tem qualquer função que não a de dar a oportunidade ao Pai de ensinar algumas boas maneiras a Andrei.
O argumento, tal como a figura do Pai, assenta em poucos diálogos (a maioria e os mais extensos pertencem aos dois irmãos), optando por expressar as suas ideias através das pequenas insinuações do pouco que é dito, do que não é dito e dos momentos de silêncio. Recusa-se a fazer qualquer separação maniqueísta das personagens, evitando a tentação de tornar o pai no "vilão" da história, conseguindo assim fugir a quaisquer estereótipos e conferir uma enorme profundidade e um certo mistério às três personagens masculinas. Isto porque em vez de nos brindar com as respostas a todas as perguntas, prefere dar-nos pistas e deixar outras questões no ar. É uma aposta díficil, mas definitivamente ganha.
Há espaço para alguma crítica social (nomeadamente no modo como é sugerida a pobreza de diversas partes da sociedade russa), mas é na composição de personagens que se marcam alguns dos maiores pontos. O Pai é um homem no sentido mais "tradicional" do termo: másculo, reservado, autoritário, seguríssimo de si, absolutamente víril e com uma enorme dificuldade em expressar qualquer tipo de carinho. A viagem para a qual parte com os seus filhos será uma espécie de ritual de iniciação onde procurará, com métodos muito pouco usuais, transmitir os seus valores e fazer deles uns "Homens". No entanto, se Andrei ainda se identifica minimamente com o seu pai, esta sua atitude vai suscitar um confronto com Ivan que destabilizará tudo e que constituirá o principal ponto de interesse da história. Para isso muito contribuem as excelentes interpretações de todo o elenco, estando os três actores principais completamente à altura uns dos outros. É, portanto, de lamentar ainda mais a morte precoce de Vladimir Garine (morreu afogado no lago onde decorreu uma parte das filmagens, pouco depois destas terminarem), que certamente ainda teria muito a dar à 7ª arte. Resta-nos a esperança de Ivan Dobronravov e a já confirmada capacidade de Konstantin Lavronenko. O que não é pouco.
Há que sublinhar, muito especialmente, a estreia na realização de Andreï Zviaguintsev, um antigo actor que consegue revelar uma maturidade absolutamente impressionante para uma primeira obra. Num filme em que podia muito facilmente cair na tentação de se limitar a justapor uma quantidade de imagens bonitas na vaga esperança de fazer "poesia", o realizador consegue contar uma história sobre o crescimento com uma enorme segurança e, ao mesmo tempo, realmente ser poético. É, aliás, na découpage e na montagem que Zviaguintsev revela uma enorme noção de ritmo, um conhecimento muito preciso de quais planos se devem prolongar e quais se devem cortar mais cedo. O resultado é uma dilatação do tempo extraordinariamente conseguida, capaz de nos fazer passar as emoções das personagens sem alguma vez despertar o tédio e a monotonia.
"O Regresso" é um filme onde o frio parece transpor o grande ecrã e invadir-nos e, no entanto, consegue também ser de um enorme calor humano, chegando a proporcionar-nos vários momentos de um humor discreto que nos fazem sentir que estamos perante seres humanos e não meras personagens de uma ficção encenada. E não esqueçamos a música de Andrei Dergatchev, subtil e poderosa ao mesmo tempo. A enigmática sequência final é o derradeiro murro no estômago, deixando-nos a tarefa de interpretar as (belíssimas) imagens que desfilam diante dos nossos olhos muito depois dos créditos acabarem de rolar. Exercício a que nos dedicamos com prazer, tal é o fascínio que o filme deixa em quem o vê.
O Regresso (Vozvrashcheniye)
Drama, Rússia, 2003.
Realização: Andreï Zviaguintsev
Argumento: Vladimir Moiseyenko & Aleksandr Novototsky
Elenco: Ivan Dobronravov, Konstantin Lavronenko, Vladimir Garine, Natalia Vdovina, Galina Petrova
Produção: Dmitri Lesnevsky
Produção executiva: Yelena Kovalyova
Dir. de fotografia: Mikhail Krichman
Música: Andrei Dergatchev
Montagem: Vladimir Mogilevsky
Som: Andrei Khudyakov
Tradução: Sara David Lopes (a partir da versão inglesa)
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